As células-tronco e a saia justa do Parlamento Europeu

Por Maurício Tuffani

Reunião no Parlamento Europeu em Bruxelas, na Bélgica (© European Union 2013 PE-EP)

Lideradas pela fundação britânica Wellcome Trust, 35 associações de instituições pesquisa europeias divulgaram nota na quarta-feira (9.abr) em protesto contra uma iniciativa de lei que prevê a proibição do financiamento público da pesquisa de células embrionárias humanas.

As entidades afirmam que haverá sérios prejuízos para o desenvolvimento de novos tratamentos para câncer, diabetes e outras doenças crônicas se for aprovada a proposta da campanha Um de Nós, que obteve mais de 1,7 milhão de assinaturas em todos os 28 países da União Europeia (UE).

No mesmo dia, a Comissão de Pesquisa, Inovação e Ciência da UE recebeu representantes da ONG. Nessa reunião, eles explicaram seus argumentos contrários a esse tipo de pesquisa, que de 2007 a 2013 recebeu 156,7 milhões de euros (R$ 482,5 milhões) da UE para 27 projetos em universidades e outras instituições, segundo declaração de um porta-voz legislativo à revista científica britânica “Science”.

Retrocesso

Em sua nota, as 35 associações de pesquisa pedem que seja mantido acordo sobre as diretrizes para o financiamento de pesquisas com todos os tipos de células-tronco aprovadas pelo Parlamento Europeu em dezembro de 2013. Destacando que a UE financia apenas atividades de pesquisa com células de embriões de até sete dias derivadas de tratamentos de reprodução assistida e descartadas sem terem sido implantadas em mulheres, o documento afirma:

“Qualquer reversão desse acordo seria um grande retrocesso para a pesquisa em toda a medicina regenerativa, na saúde reprodutiva e nas doenças genéticas, atrasando o desenvolvimento de terapias muito necessárias para toda uma gama de condições de saúde sem tratamento.”

Iniciativa de Cidadania

Na quinta-feira, os membros da Um de Nós participaram de uma audiência pública no Parlamento Europeu, com a presença de integrantes de outras comissões da UE, além da de Comissão de Pesquisa, Inovação e Ciência, como as de Desenvolvimento, de Assuntos Legais, de Indústria e também do comitê que trata de petições. Desde abril de 2012 a legislação europeia estabelece a aceitação como projetos de lei no Parlamento de propostas que alcancem 1 milhão de assinaturas de cidadãos de pelo menos sete de seus 28 países-membros no prazo mínimo de um ano.

Registrado no Parlamento Europeu em maio de 2012, o abaixo-assinado da campanha teve seu prazo para adesões encerrado em novembro do ano passado. Após a verificação do cumprimento dessa e de outras exigências legais, seu processo foi protocolado como ICE (iniciativa de cidadania europeia) em 27 de fevereiro. No âmbito do Executivo, a Comissão de Pesquisa, Inovação e Ciência da UE deve se pronunciar até 28 de maio a favor ou contra a proposta, em trâmite semelhante ao de um projeto de lei.

Decisão judicial

Um dos principais argumentos do texto da proposta da Um de Nós é uma sentença de outubro de 2011 do Tribunal de Justiça da UE. A decisão foi favorável ao Greenpeace no processo movido pelo neurobiólogo alemão Oliver Brüstle, que havia sido processado por essa entidade ambientalista por ter patenteado em 1997 uma técnica aproveitamento de células-tronco. A campanha Um de Nós destacou no argumento de sua proposta duas das conclusões dessa decisão judicial.

“O conceito de embrião humano é aplicável desde o estágio da fecundação às células totipotentes iniciais e a todo o processo de desenvolvimento e de constituição do corpo humano daí decorrente.

(…)

Uma invenção deve ser excluída da patenteabilidade quando a execução do processo técnico submetido a patente implica a destruição prévia de embriões humanos ou a sua utilização como matéria‑prima, ainda que a descrição desse processo não contenha qualquer referência à utilização de embriões humanos.”

Com base nessa decisão e no “princípio da consistência”, os organizadores da Um de Nós argumentaram que essas mesmas conclusões devem guiar as ações da UE em todas as áreas de sua competência que envolvem a proteção de embriões humanos. E destaca que entre essas áreas estão a saúde pública — atingindo as práticas de reprodução assistida e de aborto legal — e o financiamento de pesquisas.

Retórica laica

Essa mesma linha de argumentação ajudou também os líderes da iniciativa a elaborar uma retórica de divulgação não religiosa, visando facilitar a adesão de cidadãos contrários à ingerência de igrejas em assuntos como ciência e saúde. Um exemplo desse discurso é a seguinte declaração do neurocirurgião italiano Massimo Gandolfini, presidente da Associação de Médicos Católicos da Região da Lombardia e diretor do Departamento de Neurociências da Fundação Poliambulanza, em Brescia.

“A campanha Um de Nós não é uma campanha católica, mas uma iniciativa de civilização, baseada na razão e do princípio fundador da democracia, a igualdade de todos os homens. Biologicamente, o embrião humano é um ser humano, é um bebê concebido e ainda não nascido. Não é razoável matá-lo para obter células-tronco. Se estão sendo obtidos resultados reais e concretos com células-tronco de cordões umbilicais ou de doadores adultos, por que devemos matar um de nós?”

Essas afirmações desconsideram, porém, que, embora sejam úteis para tratamentos de determinados tipos de leucemias, linfomas, anemias graves e outras doenças do sangue, as células-tronco do sangue de cordão umbilical têm desvantagens para outros tratamentos e para pesquisas por possuírem características adultas.

Saia justa

É bem provável que os defensores do financiamento das pesquisas das também chamadas células pluripotentes tenham de voltar a refutar, na imprensa e em redes sociais, alegações como essa de Gandolfini. Mas esse não é o problema maior desses cientistas e de suas entidades, e muito menos da comissária responsável pela avaliação da ICE, a irlandesa Máire Geoghegan-Quinn.

O grande problema é a saia justa armada pela redação do acórdão sobre patentes do órgão máximo da Justiça da UE. A cobrança de consistência presente na exposição de motivos da proposta legislativa bate frontalmente nas diretrizes aprovadas para o uso de células-tronco em dezembro de 2013.

A elaboração dessas normas teve a participação ativa da comissária irlandesa, que certamente precisará contar sua grande experiência política e administrativa. (Além de ter chefiado os ministérios do Comércio, da Educação, de Assuntos Europeus e do Turismo, Transporte e Comunicações, ela foi também ministra da Justiça de 1993 a 1994, quando nas negociações para a declaração conjunta de paz e reconciliação entre os governos irlandês e britânico.)

Acórdão desastrado

Por ter estabelecido por meio de jurisprudência uma resposta para uma questão sujeita não só ao desenvolvimento da ciência, mas também de interpretações no âmbito da filosofia, o Tribunal Europeu pode até ter proporcionado para a campanha pela ICE uma outra oportunidade, que é a de posterior recurso a seus próprios magistrados no caso de malogro dessa iniciativa no Legislativo.

Nada a ver esse desastrado acórdão, por exemplo, com a decisão do STF no Brasil em maio de 2008, que, ao julgar favoravelmente pela constitucionalidade dessa linha de pesquisas, teve o bom senso de não entrar nessa seara.

Baixa representatividade

Quanto à petição com mais de 1,7 milhão de apoiadores, seu papel em princípio terminou com a aceitação da proposta da Um de Nós no Parlamento Europeu. Por si só, não é um bom argumento pela aprovação da lei esse total de assinaturas, que representa cerca de 0,35% da população dos países-membros da UE.

Por mais que se tente argumentar que não se trata de um movimento religioso, seus maiores índices de maior representatividade em países como a Itália, onde 1,04% da população o apoiou, apontam justamente para o contrário, como mostra a tabela a seguir. Como esses adeptos se valeram de um instrumento do Estado democrático, seria, em princípio, razoável esperar que eles refletissem profundamente sobre a baixa representatividade de sua convicção. Certamente isso não é o que se pode esperar dos organizadores da campanha.

Tabela-Iniciativa-UE