A religião é um assunto que costuma atrair muita atenção às vésperas do Natal e da Páscoa. Na segunda-feira (14.abr), primeiro dia do Pesach judaico e desta semana que termina no domingo da Ressurreição, o escritor Amir Aczel, autor de várias obras de divulgação científica, publicou no portal “The Huffington Post” o artigo “Matando o Deus de Einstein”. No dia seguinte, ele lançou o livro “Por que a Ciência não Desmente Deus”. O foco das duas publicações é a controvérsia entre ciência e religião. Ainda não li o livro, que mal acaba de ser posto à venda na Amazon e na Barnes and Noble, mas espero que ele não tenha a mesma retórica argumentativa do artigo.
Em seu post, que certamente faz parte da estratégia de divulgação de seu novo livro, Aczel contesta cientistas que teriam caracterizado Albert Einstein (1879-1955) como um ateu em sentido pleno, motivados pelo fato de grande parte do modelo da origem do universo a partir do Big Bang se basear na teoria da relatividade geral elaborada pelo físico alemão. Os principais alvos dessa crítica do escritor de 63 anos e nascido em Israel são o cosmólogo estadunidense Laurence M. Krauss, autor do livro “Um Universo que Veio do Nada” (2012), e o etólogo britânico Richard Dawkins, autor de best-sellers como “O Gene Egoísta” (1976) e “Deus, um Delírio” (2006).
Obrigação de criticar
O matemático israelense afirma que, por ele ter estudado o trabalho de Einstein por mais de uma década e meia, considera sua obrigação contestar esses cientistas. E a partir disso ele retoma a discussão sobre a religiosidade do pai da relatividade, a começar por sua participação na sinagoga, em 1913, quando viveu em Praga, e por suas afirmações relacionadas à fé registradas por historiadores da ciência.
Destacando a famosa declaração de Einstein sobre sua crença em algo semelhante ao “Deus” do filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677) —uma entidade poderosa que seria transcendente ao mundo e criadora das leis da física—, Aczel reconhece que essa afirmação está longe de caracterizar a entidade divina das principais religiões ocidentais, mas está distante também da tese do universo originado do nada, de Krauss, que
… tenta reinterpretar as palavras de Einstein como se elas não significassem o que ele escreve. Richard Dawkins faz o mesmo em um capítulo intitulado “Um descrente profundamente religioso”, referindo se a Einstein. Mas essas proclamações são injustas.
Omissões estranhas
Para alguém que ressalta o tempo que dedicou aos seus estudos sobre Einstein, é estranha a desconsideração por parte do escritor israelense de muitas das declarações do físico alemão, a começar por aquela de uma correspondência de março de 1954, que foi destacada por Dawkins em “Deus, um Delirio”:
Sou um descrente profundamente religioso. Isso é, de certa forma, um novo tipo de religião. Jamais imputei à natureza um propósito ou um objetivo, nem nada que possa ser entendido como antropomórfico. O que vejo na natureza é uma estrutura magnífica que só compreendemos de modo muito imperfeito, e que não tem como não encher uma pessoa racional de um sentimento de humildade. É um sentimento genuinamente religioso, que não tem nada a ver com misticismo. A idéia de um Deus pessoal me é bastante estranha, e me parece até ingênua.
Quem estudou razoavelmente a vida do criador da teoria da relatividade sabe que ele tem várias afirmações que podem servir de munição tanto para Dawkins como para Aczel. Aqueles que tiverem a curiosidade de conferi-las com suas fontes devidamente referenciadas podem consultar a página sobre Einstein no site dedicado ao paleontólogo Stephen Jay Gould (1941-2002).
Repercussão religiosa
Tomei conhecimento dessa abordagem de Aczel em função da repercussão que seu livro já começou a ter na imprensa religiosa, como a reportagem “Ciência não desmente Deus: renomado matemático declara que Deus existe”, no site “Christian News”. Inclusive o post “Ciência não desmente Deus nem prova Darwin?”, o portal “Uncommon Descent”, que é uma das principais mídias de grupos de adeptos do Desenho Inteligente ou Design Inteligente, que junto com os criacionistas combatem a teoria da evolução.
Já há resenhas sobre esse livro, como a do físico Alan Lightman, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), no jornal “The Washington Post”, que não poupou críticas ao autor, destacando o fato de que ele, aparentemente, não teria levado em conta que “Deus não está sujeito a testes experimentais”, acreditando ou não n’Ele.
Impossibilidade lógica
Independentemente do que possa conter seu livro, o que me causa estranhamento em relação a Aczel nesse artigo vem do fato de ele ser historiador da matemática, o que inclui a lógica matemática. Como pode ele nem sequer mencionar a impossibilidade lógica de refutar e também de comprovar a existência de Deus?
É essa mesma impossibilidade de prova e de refutação que fundamentou o famoso critério de falseabilidade, estabelecido pelo filósofo da ciência austríaco Karl Popper (1902-1994) em sua obra “Lógica da Pesquisa” (1934). Uma afirmação é falseável se ela tem a possibilidade de ser refutada por um único contra-exemplo. É o caso da frase “Todos os átomos são indivisíveis”. Ela foi considerada verdadeira durante muito tempo, mas, foi refutada experimentalmente em 1897, quando o físico britânico Joseph John Thomson (1856-1940) obteve dados que indicavam que a estrutura atômica é formada por partículas com carga elétrica.
Desse modo, do ponto de vista da falseabilidade, os enunciados científicos —e, por extensão, as teorias formadas por eles— não são provados empiricamente, mas somente corroborados. E podem, eventualmente, ser refutados por novos dados experimentais.
Tipos de ateus e crentes
Não é possível tratar da existência de Deus em termos falseáveis. Aczel não considerou isso no artigo que publicou nesta semana, nem nas primeiras páginas de seu livro recém-lançado, que podem ser lidas no site da Amazon. Dawkins, por sua vez, em “Deus, um delírio”, foi mais cuidadoso com isso, o que o obrigou a buscar caracterizar como altamente improvável a existência divina.
Embora eu considere improdutiva a militância ateísta e lamentáveis seus desdobramentos —que muitas vezes culminam na promoção de preconceitos—, não há como negar que esforços como os de Dawkins se baseiam em pesquisas que sempre têm utilidade para o conhecimento. Em que pese a militância desse pesquisador britânico, sua abordagem probabilística o levou a considerar que mesmo jamais sendo comprovada ou descartada com certeza, a posição de cada pessoa em relação à existência de Deus comporta um espectro de probabilidades nos sete níveis a seguir.
- Teísta convicto. Probabilidade de 100% de que Deus existe. “Nas palavras de [Carl-Gustav] Jung [psiquiatra e psicoterapeuta suíço (1875-1961)], “Eu não acredito, eu sei”.
- Probabilidade muito alta, mas que não chega aos 100%. Teísta de facto. “Não tenho como saber com certeza, mas acredito fortemente em Deus e levo minha vida na pressuposição de que ele está lá.”
- Maior que 50%, mas não muito alta. Tecnicamente agnóstico, mas com uma tendência ao teísmo. “Tenho muitas incertezas, mas estou inclinado a acreditar em Deus.”
- Exatamente 50%. Agnóstico completamente imparcial. “A existência e a inexistência de Deus têm probabilidades exatamente iguais.”
- Inferior a 50%, mas não muito baixa. Tecnicamente agnóstico, mas com uma tendência ao ateísmo. “Não sei se Deus existe, mas estou inclinado a não acreditar.”
- Probabilidade muito baixa, mas que não chega a zero. Ateu de facto. “Não tenho como saber com certeza, mas acho que Deus é muito improvável e levo minha vida na pressuposição de que ele não está lá.”
- Ateu convicto. “Sei que Deus não existe, com a mesma convicção com que Jung ‘sabe’ que ele existe.”
Dawkins se coloca no nível 6 tendendo para o 7. Como bom cientista que ele é, só mesmo por aproximação ele pode ir em direção ao extremo. Eu me coloco na posição 6, mais compatível com meu ceticismo, que é reforçado por uma das poucas certezas definitivas que podemos ter: as “descobertas” científicas não são comprovadas, mas somente corroboradas. Não sou adepto do pensamento de Popper, mas não abro mão do proveito desse seu princípio para o conhecimento.
Surpresa com o supérfluo
Como já vimos, do ponto de vista da lógica chega a ser ridiculamente supérfluo afirmar que a ciência não desmente a existência de Deus. A surpresa de criacionistas com o argumento central da nova obra de Aczel acaba sendo, na prática, a mesma que observei há alguns anos em um casal que leu em uma embalagem de azeite de oliva a informação “Não contém colesterol”. Mais surpreso ainda, e indignado, o casal ficou após eu explicar que todos os óleos de origem vegetal não contêm colesterol.
Enfim, a ciência não nega Deus, assim como não tem colesterol no azeite que se usa no bacalhau.
Boa Páscoa!