A explicação dada por cinco pesquisadores japoneses ao recolherem um trabalho científico que eles haviam publicado em dezembro certamente deve ter provocado comparações com uma famosa conversa do filme “O Poderoso Chefão” (1972). Na nota em que anuncia a remoção de seu site do estudo sobre um composto de silício, a revista “Journal of Chrystal Growth” afirma que a razão do pedido dos autores para a retirada foi uma decisão de negócios (“business decision”) de seu patrão.
Associadas ao constrangimento que há em toda retratação científica, essas palavras lembram, como piada pronta, a explicação do mafioso Solozzo ao jovem Michael Corleone, por ter matado seu pai, Don Corleone: “I am sorry. What happened to your father was business.” (Sinto muito. O que aconteceu com seu pai foi negócio.)
O trabalho publicado em dezembro tratou sobre o carbeto de silício (SiC), um composto raro na natureza, mas que é produzido industrialmente a partir da sílica e do coque. Em sua forma mais conhecida, ele é o carborundo ou carborundum, usado como abrasivo. Essa substância também é sintetizada por meio de outros processos bem mais sofisticados para obter materiais de estrutura cerâmica aplicados em dispositivos eletrônicos, semicondutores, ferramentas de corte, instrumentos ópticos de precisão, entre outras outros.
Corporações
O estudo, segundo seu resumo —que também foi retirado do site da revista, mas ainda pode ser lido no portal Science Index—, constatou interações em falhas nas aglomerações de carbeto de silício e apontou propostas sobre essas estruturas. Seja o que for isso, os interessados não poderão, por enquanto, saber mais detalhes.
O autor principal da pesquisa é Yohei Ikebe, da Corporação Hoya, que produz lentes de alta precisão e materiais para aplicação em equipamentos de eletrônica e informática. O segundo autor é Hiroyuki Nagasawa, da Universidade Keiho, o único do grupo que tem vínculo empregatício acadêmico. Os outros três, Naoki Hatta, Takamitsu Kawahara e Kuniaki Yagi, trabalham na Corporação Sicoxs, que atua especificamente com o carbeto de silício.
Explicação lacônica
A nota acrescentada em março à página da edição de dezembro onde estava o artigo desses cinco autores se resume a uma única e lacônica frase:
Este artigo foi retratado a pedido dos autores por causa de uma decisão de negócios de seu empregador.
Ontem (quarta-feira, 23.abr), em seu post sobre essa história, o blog “Retraction Watch”, que monitora retratações em geral e também casos de suspeitas de más-condutas científicas, inclusive fraudes, comentou:
O que está não claro nisso é por que que uma ” decisão de negócios ” poderia se sobrepor ao interesse da revista em preservar a publicação. Talvez o que o anúncio esteja realmente dizendo é que os dados eram de propriedade das empresas, e não da universidade. Mas por que não dizê-lo, se esse é o caso?
Após essas considerações, o blog informou que solicitou esclarecimentos adicionais ao editor da revista e que, se recebê-los, eles serão incluídos por meio de atualização do mesmo post.
Retratação ou remoção?
A revista “Journal of Chrystal Growth” é publicada pela Elsevier, que é o maior grupo editorial do mundo na área acadêmica. Todos os periódicos desse conglomerado seguem uma mesma política com normas para os seguintes procedimentos.
Retirada de artigo: Usada somente para artigos na imprensa que representam as primeiras versõe e às vezes contêm erros, ou que possam acidentalmente terem sido enviados duas vezes. Ocasionalmente, mas com menos frequência, os artigos podem representar violações de códigos de ética profissionais, como a submissão múltipla, falsas acusações de autoria, plágio, uso fraudulento de dados ou algo semelhante.
Retratação de artigo: Infrações de códigos de ética profissionais, como a submissão múltipla, falsas acusações de autoria, plágio, uso fraudulento de dados ou algo semelhante. Ocasionalmente, uma retratação é usada para corrigir erros na submissão ou publicação.
Remoção de artigo: Limitações legais à editora, ao titular dos direitos de autoria ou a autor(es).
Substituição de artigo: Identificação de dados falsos ou imprecisos que colocariam sério risco à saúde se fossem usados.
A responsabilidade pelas decisões tomadas com base nesses princípios cabe ao editor de cada revista. Desse modo, o editor inquirido pelo “Retraction Watch” precisa, realmente dar boas explicações. Em sua lacônica nota ele empregou a palavra “retratado” (“retracted”), ou seja, não teria sido uma “retirada”, nem uma “remoção” ou “substituição”. O problema é que a retratação sempre envolve más-condutas científicas. Das duas, uma: ou a nota confundiu denominações dos tipos de procedimentos ou houve problemas mais complicados que uma simples decisão apressada de publicar um artigo.
Público versus privado
Esse não é o primeiro caso que envolve interesses privados em um estudo científico que tem a participação de uma instituição acadêmica. É razoável que empresas tentem proteger vantagens decorrentes de seu investimento em pesquisa e desenvolvimento. Sem falar em trabalhos que são desenvolvidos com base em dados que são de propriedade dessas companhias.
Mas o que dizer, em situações que envolvem esse tipo de parceria, do trabalho realizado pelos integrantes de universidades e instituições de pesquisa científica, onde a publicidade e o interesse público são preceitos básicos? Ainda que no caso em questão tenha havido somente um membro de uma universidade entre o total de cinco autores, não haveria nenhum interesse acadêmico em favor da manutenção do estudo?
Essa é apenas mais uma questão que envolve a oposição entre os interesses públicos na pesquisa científica. É uma discussão importante que deveria ser levada adiante, apesar do risco de ela ser sabotada pela demonização predominante nos meios acadêmicos de tudo o que diz respeito ao interesse privado.
Independentemente de qualquer desfecho que ainda pode vir a ser dado a esse caso, cópias do arquivo PDF desse estudo que as corporações Hoya e Sicoxs consideram seu certamente já estão em poder de empresas concorrentes. Ou seja, a decisão de preservar direitos privados sobre esse conteúdo após quase três meses de exposição foi inócua. Desse modo, a “despublicação” acabou, na prática, gerando outro tipo de prejuízo, o do impedimento do acesso a uma informação científica que já havia se tornado pública.
Ou seja, o prejuízo acabou sobrando para o interesse público.