O apelo ao vale-tudo para negar a teoria da evolução terminou em vexame nesta semana. Criacionistas comemoravam o que acreditavam ser a refutação da seleção natural proposta por Charles Darwin em “A Origem das Espécies”, quando caiu sobre eles um balde de água gelada. Tudo começou com uma reportagem que confundiu uma das hipóteses de Darwin com sua própria teoria ao apontar as conclusões de uma pesquisa sobre o comportamento de algas.
Na segunda-feira (28.abr), a reportagem “Duvidando de Darwin: Descobertas com algas surpreendem cientistas”, do site de notícias científicas “Live Science”, afirmou que nessa pesquisa foram realizados experimentos cujos resultados não eram compatíveis com a teoria da evolução. Dois dias depois (quarta-feira, 30.abr), a notícia foi desmentida no espaço de comentários da reportagem por um dos autores da pesquisa.
Origem da confusão
A reportagem abriu com as seguintes afirmações.
“Uma das hipóteses de Charles Darwin postula que espécies estreitamente relacionadas irão competir por alimentos e outros recursos mais fortemente entre si do que com outras mais distantes, pois ocupam nichos ecológicos semelhantes. Por muito tempo a maioria dos biólogos aceitou isso como verdade.
“Assim, três pesquisadores foram mais do que um pouco abalados ao descobrir que seus experimentos com algas verdes de água doce não conseguiram respaldar a teoria de Darwin — pelo menos em um caso.”
O desmentido
Em sua intervenção nos comentários à reportagem, o ecólogo Bradley J. Cardinale, da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, que foi um dos autores do estudo, destacou, entre outros esclarecimentos, os dois pontos a seguir.
“1. Não há nada nesta pesquisa que refute a teoria de Darwin da evolução pela seleção natural. Quando cientistas usam a palavra ‘teoria’, eles a usam para se referir a uma hipótese que tem resistido a milhares de tentativas de refutá-la, mas, no entanto, continua a se manter verdadeira. Até o momento, ninguém foi capaz de demonstrar que a teoria da evolução de Darwin pela seleção natural é incorreta.
“2. Darwin tinha muitas outras ideias além daquela sobre a seleção natural, e nosso trabalho foi focado em uma de suas outras hipóteses. Em particular, estávamos testando a hipótese de que às vezes é chamado de hipótese da competição em parentesco (CRH ), que propõe que a concorrência é mais forte entre espécies estreitamente relacionadas do que entre espécies distantemente relacionadas porque o primeiro deve ser mais ecologicamente similar. Não estamos encontrando apoio para a CRH , o que é uma surpresa … mas, novamente, isso não tem nada a ver com a teoria da evolução de Darwin pela seleção natural.”
Hipótese não é teoria
Em poucas palavras, o cientista reclama pelo fato de a reportagem ter confundido uma das hipóteses feitas por Darwin com a própria teoria da seleção natural. O pesquisador afirmou também que, apesar de ter dado entrevista para a repórter Marlene Cimons, da Fundação Nacional de Ciências (NSF), ele não aprovou a edição final da reportagem nem a expressão “Duvidando de Darwin” do título.
Um trabalho jornalístico não pode depender de aprovação das fontes. Sobre esse ponto, a reclamação de Cardinale só faz sentido quando se trata de divulgação institucional. Pode ser o caso dessa matéria, que é apresentada no site “Live Science” como produto de uma parceria com a NSF, que financiou a pesquisa. O estudo foi publicado em setembro do ano passado na revista britânica “Proceedings B” , da Royal Society.
Erro fatual
A menos que eu não tenha percebido outros problemas, o erro fatual do texto assinado pela jornalista — e ressalto o “assinado”, pois pode ter havido falha por parte de terceiros na edição —, foi o uso da palavra “teoria” para se referir a uma hipótese específica de Darwin. Além de constar no segundo parágrafo do texto, essa confusão ocorreu também nas legendas de duas imagens.
A expressão “duvidando de Darwin”, no título, a rigor, não é um erro, uma vez que se trata realmente de pôr em questão algo que tenha sido afirmado, ainda que hipoteticamente, pelo fundador da evolução. Mas acaba sendo um reforço ao grave erro do segundo parágrafo, que gerou a interpretação de que a seleção natural havia sido refutada.
Erro na abordagem
Não bastasse esse erro fatual, que pode até ter sido fruto de um problema de edição, houve um problema muito maior, que foi não contextualizar a importância da hipótese da competição em parentesco no âmbito do estado da arte da teoria da evolução. A falta dessa contextualização teria sido suficiente para fazer a reportagem ser enganosa, mesmo que não tivesse acontecido o erro fatual, inclusive sem a expressão “duvidando de Darwin” no título. Afinal, o senso comum não distingue hipótese de teoria. Para todos os efeitos, a maioria dos leitores acabaria entendendo que a evolução teria sido refutada ou, pelo menos, posta em xeque.
Sem esse esclarecimento para o leitor, essa distorção acabou sendo mais fortalecida ainda com a apresentação na reportagem das declarações de surpresa por parte do pesquisador com seus achados.
Oportunismo desonesto
Além daqueles que não estariam atentos ou não entenderiam a diferença entre hipótese e teoria, existem, infelizmente, aqueles que estão mais preocupados em combater a teoria da evolução a todo custo, como acontece com muitos dos adeptos do criacionismo, desde aqueles que advogam interpretações literais da origem do universo e da vida com base na Bíblia aos mais sofisticados, que defendem a tese do Design Inteligente.
Entre as repercussões dessa reportagem equivocada, uma das mais desonestas foi a do site criacionista “Creation Evolution Headlines”, a começar por sua chamada “Malthus distorceu Darwin que distorceu o mundo”.
“Não há nenhuma evidência de uma presunção fundamental da teoria de Darwin — a própria presunção que deu origem ao darwinismo social .
“É raro ver um artigo de ciência dizer ‘Darwin estava errado’, mas ‘Live Science’ relutantemente admitiu que uma idéia-chave proposta por Darwin em “A Origem”, em 1859, é o oposto da maneira com que a natureza realmente funciona.”
Distorção, na verdade, é essa, serial, que segue um padrão de descaramento que lamentavelmente tem sido cada vez mais frequente.