Os buracos no projeto da profissão de historiador

Por Maurício Tuffani
Senador Paulo Paim (PT-RS), autor da proposta de lei de regulamentação da profissão de historiador. (Imagem: Agência Senado)
Senador Paulo Paim (PT-RS), autor da proposta de lei de regulamentação da profissão de historiador, que desde novembro de 2012 passou a tramitar na Câmara dos Deputados. (Imagem: Agência Senado)

Uma verificação de quórum impediu ontem (quarta-feira, 7.mai) a aprovação da nova versão da proposta de regulamentação da profissão de historiador pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados. Criticado por estudiosos e associações de pesquisa e retirado do plenário da Câmara após dez inclusões em regime de urgência, o projeto de lei 4.699/2012 acabou retornando em setembro do ano passado às comissões para receber emendas. Mas se tivesse sido aprovada com a redação apresentada ontem à CCJC, a iniciativa teria retornado ao plenário sem definir a instância em que deve ser feito o registro profissional que se pretende estabelecer.

Em sua formulação anterior, o artigo 7º do projeto de lei 4.699/2012 tinha a seguinte redação.

“O exercício da profissão de historiador requer prévio registro na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do local onde o profissional irá atuar.”

​Em seu parecer apresentado à CCJC, a relatora do projeto, deputada deputada Fátima Bezerra (PT-RN), afirmou sobre esse dispositivo:

“Não pode lei iniciada no Legislativo dar atribuição a órgão ou entidade integrante da estrutura do Poder Executivo. Assim, impõe-se revisão redacional.”

A partir dessa avaliação, a deputada propôs para o citado artigo 7º a substituição pelo texto da seguinte emenda.

“O exercício da profissão de historiador requer prévio registro junto à autoridade trabalhista competente.”

Alteração inócua

O problema é que a deputada propôs trocar seis por meia dúzia, ou seja, sugeriu uma alteração inócua em relação ao problema que detectou. E seu comentário sobre a competência privativa do Poder Executivo acabará dando munição para os parlamentares que não concordam com a proposta.

Não existe “autoridade trabalhista competente” fora do poder público para proceder a registros profissionais. De fato, a Constituição Federal, por meio de seu artigo 61, estabelece que são de iniciativa privativa da Presidência da República as leis que dispõem sobre organização administrativa, o que inclui a atribuição de receber, analisar e deferir solicitações de registros profissionais. É o que fazem as autarquias conhecidas pela denominação de conselhos federais e regionais e também, no caso das profissões regulamentadas sem a criação dessas entidades, as delegacias e superintendências do Ministério do Trabalho e Emprego.

Desse modo, como observou a deputada em seu parecer, uma lei que trata dessa atribuição não pode ser proposta pelo Poder Legislativo. Antes de tramitar na Câmara, a iniciativa de regulamentação relatada por ela foi apresentada originalmente em 2009 no Senado, a pedido da Anpuh (Associação Nacional de História), pelo senador Paulo Paim (PT-RS). Seu projeto de lei 368/2009 foi aprovado em novembro de 2012, quando seguiu para a Câmara.

Perguntei por telefone e por e-mail ao gabinete da deputada Fátima Bezerra se, na avaliação dela, existe fora do poder público “autoridade trabalhista competente” para proceder a registros profissionais. (Juízes trabalhistas e procuradores do Trabalho são autoridades trabalhistas, mas a eles não compete essa atribuição.) Encaminhei o mesmo questionamento ao gabinete do deputado Alessandro Molon (PT-RJ), que apresentou o parecer da relatora porque ela esteve ausente da sessão na CCJC. Até o fechamento deste post, às 21h10, não recebi resposta.

Mudanças positivas

O texto original do projeto de lei, que antes previa apenas para graduados em história o exercício dessa profissão, desde março, com aprovação do parecer do deputado Roberto Policarpo (PT-DF) pela Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público (CTAS),  amplia para portadores de diploma de mestrado ou doutorado em programa de pós-graduação reconhecido pelo governo que tenha linha de pesquisa dedicada à história. Além disso, a emenda do relator retirou o ensino superior da relação de atribuições dos historiadores previstas no projeto de lei.

Essas duas alterações eliminam aspectos da proposta original que foram criticados. Um dos que se manifestaram contra a iniciativa foi o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho, que em novembro de 2012, logo após a aprovação no Senado, disse em entrevista à Folha:

“Isso é um corporativismo inadmissível. Reserva de mercado é algo absurdo. Posso listar grandes historiadores brasileiros que não são formados em história.”

Em contrapartida, na mesma reportagem o historiador Carlos Guilherme Mota, professor emérito da USP, declarou:

“Se for para lecionar, faz sentido, porque precisa ter formação na área. Para dar aula em universidade eu deixaria em aberto, porque há antropólogos e sociólogos com formação histórica sólida.”

O senador Paim, autor da proposta por meio do projeto de lei 368/2009, contestou Mota e afirmou que aulas de história só podem ser ministradas por um diplomado nessa área.

“Naturalmente, não vou querer que arquiteto forme médico, por exemplo. Por que ia ser diferente no caso de historiador?”

Mais críticas

Em junho de 2013, já na Câmara, após passar pela primeira vez pelas duas comissões, o PL 4699/2012 entrou em regime de urgência na pauta de votações do plenário. Foi no início desse período que surgiram as críticas mais incisivas ao projeto, como a carta conjunta da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

Em sua carta a todos os deputados federais, Helena Nader, presidente da SBPC, e Jacob Palis, presidente da ABC, afirmaram:

“O projeto tem problemas graves e, se aprovado na forma em que está, trará sério prejuízos ao Brasil e ao ensino superior de inúmeras disciplinas relacionadas com a História.”

Em resposta a essa correspondência em seu ofício à SBPC, Benito Bisso Schmidt, então presidente da Anpuh, declarou:

“O PL apenas quer regulamentar a atividade de Historiador nos âmbitos do ensino formal e da pesquisa histórica científica. Não veda a ninguém escrever ou ensinar História, apenas não confere o título de Historiador aos que não têm essa formação específica.”

O projeto de lei recebeu também recebeu no ano passado críticas da Associação Americana de História (AHA), que, por sua vez, foi contestada por cinco pesquisadores da área de estudos brasileiros em universidades dos Estados Unidos.

Nova redação

No Brasil, além da SBPC e da ABC, outras associações acadêmicas que também apresentaram críticas ao projeto de lei. Entre elas estavam a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) e a Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), que entraram em entendimento com a Anpuh e com a qual apresentaram em outubro de 2013 sua proposta conjunta de alteração. A sugestão foi incorporada ao PL com o já citado parecer do deputado Policarpo.

Com isso, as atribuições previstas para a profissão de historiador passaram a ser definidas no novo texto em seu artigo 4º da seguinte forma.

“Art. 4º São atribuições dos historiadores:

“I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, desde que seja cumprida a exigência da LDB quanto à obrigatoriedade da licenciatura;

“II – organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História;

“III – planejamento, organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica;

“IV – assessoramento, organização, implantação e direção de serviços de documentação e informação histórica;

“V – assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos, para fins de preservação; e

“VI – elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.”

Mas essa formulação traz outro problema. O caput do artigo não define essas atribuições como exclusivas da profissão de historiador. A falta desse adjetivo ou de outro equivalente, como “privativas”, ao longo de todo o texto do projeto de lei faz com que a própria regulamentação se torne também inócua. Por outro lado, esse tipo de restrição está presente nos textos de leis que regulamentam profissões como a de geógrafo, biólogo, museólogo e outras apontadas como modelos.

Sem conselhos

Diferentemente do que alegaram alguns críticos, o projeto de lei nunca teve dispositivos que visavam impedir especialistas de outras áreas escreverem livros de história. Além disso, a proposta difere substancialmente do modelo da regulação de algumas categorias de nível superior, como as de médicos, dentistas, engenheiros, arquitetos, contadores, economistas e outras, uma vez que não prevê a criação de um conselho federal com suas ramificações regionais investidos do poder de polícia.

Na regulamentação prevista inicialmente pelo senador Paulo Paim e no PL 4.699/2012, bastaria apenas a obrigação de registro profissional prévio no no Ministério do Trabalho e Emprego mediante a apresentação de diploma ou de comprovação de exercício anterior no período definido.

No entanto, dada a competência exclusiva do Poder Executivo apontada pela relatora do projeto de lei para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, parece que a única saída possível para essa proposta é o arquivamento.