Os livros adaptados e o esvaziamento da linguagem

Por Maurício Tuffani
Aristóteles, Platão e Sócrates em mosaicos no Santuário San Paolo, em Reggio de Calabria, na Itália (Imagem: Saverio Autellitano/Licença Creative Commons Attribution 2.5 Generic)
Aristóteles, Platão e Sócrates em mosaicos no Santuário San Paolo, na cidade de Reggio di Calabria, no sul da Itália (Imagem: Saverio Autellitano/Licença Creative Commons Attribution 2.5 Generic)

Ainda está rendendo discussões a simplificação de textos clássicos da literatura, cuja tematização na imprensa e nas redes sociais teve como ponto de partida o artigo “Escritora muda obra de Machado de Assis para facilitar a leitura”, publicado na Folha no dia 4 pelo colunista Chico Felitti. Embora eu também não concorde com essa iniciativa editorial, discordo de muitas das críticas feitas a ela. E, para ficar nessa discussão de modo equilibrado, prefiro começar por apontar rapidamente um aspecto destacado hoje no mesmo jornal por meu amigo e também colunista Hélio Schwartsman em seu artigo “Traições literárias”.

Logo após dizer que prefere “ficar na coluna do meio” na polêmica entre simplificar ou não textos clássicos, Hélio afirma:

“A boa crítica literária combina mais com iconoclastia do que com sacralização. Não há necessidade de endeusar cada uma das frases lapidadas pelo autor, especialmente se elas estão a criar uma barreira que afasta potenciais leitores do texto. Se é lícito fazer adaptações de Homero, Cervantes e Shakespeare, não há por que considerar Machado intocável.”

Usar dicionário

Concordo plenamente com as duas primeiras frases desse parágrafo, mas discordo da última. Não dá para colocar no mesmo nível de dificuldade os textos originais de escritores de épocas distintas, ainda mais se a comparação envolve autores da Antiguidade e de épocas mais recentes e, além disso, do mesmo idioma em que se pretendem fazer adaptações.

Machado de Assis é perfeitamente compreensível nos dias de hoje com o auxílio de um dicionário — e Hélio jamais pretenderia apoiar adaptações feitas para evitar esse tipo de consulta. Por outro lado, isso não basta para entender textos originais de autores bem mais antigos. Aliás, em muitos casos é praticamente impossível ter acesso a textos originais. E neste ponto deixo de lado minha observação ao colunista para destacar esse aspecto que nem sequer foi cogitado em outras críticas feitas simplória e arrogantemente contra as adaptações em geral.

Adaptações despercebidas

Tomemos como exemplo a obra de Aristóteles (384-322 a.C.) atualmente conhecida “Metafísica”. Em primeiro lugar, esse nome nem sequer foi dado pelo próprio pensador macedônico ao conjunto de 14 tratados sobre o tema que ele chamava de “primeira filosofia”. A hipótese mais provável é que o título “ta metá ta fysiká” (Além da Física, ou Além da Natureza) tenha sido criado cerca de 300 anos depois, no século 1º a.C., por Andrônico de Rodes, que localizou e organizou a enorme quantidade de manuscritos atribuídos ao filósofo, em parte considerados perdidos até então.

Diferentes versões dessa sistematização surgiram na Idade Média. E foi com base em algumas delas que de 1831 a 1836 o alemão Immanuel Bekker (1785-1871) estabeleceu o texto em grego com o título em latim “Aristoteles Opera Omnia” (Obra Completa de Aristóteles), que hoje é a referência para as traduções atuais das obras do filósofo macedônio. Desse modo, estão muito distante dos textos originais desse pensador até mesmo aqueles que têm à mão edições bilíngues consagradas, como as da Loeb Classical Library (grego-inglês), editada pela Universidade Harvard, e da Belles Letres (grego-francês).

(Nem vale a pena alongar a conversa com outras sérias dificuldades de textos muito antigos, como a inexistência de letras minúsculas e acentos e a ausência de espaços entre palavras. Só para dar uma ideia do que seja isso, a frase inicial da chamada “Metafísica”, que é “Todos os homens, por natureza, desejam o conhecimento”, apresentada no texto de referência estabelecido por Bekker  sob a forma gramaticalmente bem-arrumada “Πάντες ἄνθρωποι τοῦ εἰδέναι ὀρέγονται φύσει”, pode ter sido originalmente algo como “ΠΑΝΤΕΣΑΝΘΡΩΠΟΙΤΟYΕΙΔΕΝΑΙΟΡΕΓΟΝΤΑΙΦYΣΕΙ”.)

Adulterações

Além de não ser possível evitar completamente adaptações para apresentar textos mais antigos, um dos grandes problemas de obras que passaram por sucessivas mediações é a mudança de significado.

Em muitos casos, esse tipo de alteração pode ser proposital, como as que aconteceram no período medieval, quando os estudos de obras clássicas na Europa estava restrito a membros da Igreja. Uma das adulterações mais famosas de textos clássicos gregos aconteceu por razões moralistas com o “Banquete”, também traduzido como “Simpósio”, de Platão. Foi no trecho a seguir, em que Alcibíades fala sobre seu amor por Sócrates, reproduzido da tradução brasileira de José Cavalcante de Souza.1

“(…) pois encontrei-me, senhores, a sós com ele, e pensava que logo ele iria tratar comigo a que um amante em segredo trataria com o bem-amado, e me rejubilava. Mas não, nada disso absolutamente aconteceu; ao contrário, como costumava, se por acaso comigo conversasse e passasse o dia, ele retirou-se e foi-se embora. Depois disso convidei-o a fazer ginástica comigo e entreguei-me aos exercícios, como se houvesse então de conseguir algo. Exercitou-se ele comigo e comigo lutou muitas vezes sem que  ninguém nos presenciasse; e que devo dizer? Nada me adiantava.”

A adulteração está na expressão que destaquei em negrito e é explicada no texto a seguir por Livio Rossetti, professor emérito da Universidade de Perugia, na Itália.2

“Por exemplo, ainda hoje é normal traduzir ‘syngymnázsthai’, que aparece três vezes no ‘Simpósio” de Platão (217bc), por ‘Fazer ginástica’ silenciando sobre aspecto em nada relevante da nudez dos corpos (‘gymnòs’ significa ‘nu’, e ‘gymnásion’ quer dizer, em primeiro lugar, algo como ‘nuderia’). Entretanto, o contexto sugere inequivocamente a ideia de ‘ficar os dois nus’ (para fazer, ou com a desculpa de fazer, exercícios físicos). Com efeito, quem fala é Alcibíades, fazendo referência a seus vãos esforços para arrastar Sócrates para uma relação abertamente homossexual.”

Linguagem e estilo

Não podemos, portanto, ser taxativos com relação a toda e qualquer iniciativa de adaptação,  inclusive porque existem trabalhos desse tipo elaborados por profissionais com larga experiência em ensinos literários. Mas deve ser reavaliada a forma como órgãos governamentais dão apoio financeiro para projetos com essa finalidade. É com razão que muitas críticas ressaltaram a importância do estilo e de outros aspectos da linguagem em obras literárias. Nesse sentido, a substituição de expressões usadas pelos próprios autores implica necessariamente um empobrecimento do conteúdo.

Além desse depauperamento de conteúdo pela substituição da forma, há um outro aspecto pernicioso decorrente de poupar os jovens leitores de seu contato com termos desconhecidos. Esse tipo de simplificação implica também uma crescente indigência do vocabulário. Não é exatamente o mesmo processo de eliminação de palavras na expansão da Novilíngua para desestimular o pensamento crítico e facilitar o regime totalitário de “1984″, de George Orwell. Mas tem muito a ver com o que foi chamado de “esvaziamento rápido e onipresente da linguagem” pelo filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), em 1946, em uma carta, mais tarde conhecida na forma do livreto “Carta sobre o Humanismo”.3

“Desse modo, a linguagem cai sob a ditadura da opinião pública, que decide de antemão tudo o que é compreensível e o que deve ser rejeitado como incompreensível.”

No final das contas, sem a salvaguarda necessária para ser um trabalho criterioso de profissionais devidamente preparados, a simplificação de obras literárias se prestará para reforçar cada vez mais o espírito de ‘cumprir tabela’ no ensino.  Sem esse cuidado, e com o crescimento desse tipo de atividade editorial, teremos ao lado da desigualdade de renda e de outros atrasos sociais mais um vetor para impulsionar a indigência em nossa educação.

Referências
  1. Platão, “Diálogos”, coleção Pensadores, Abril Cultural, 1972, pág. 54. Tradução de José Cavalcante de Souza, publicada originalmente pela Difel (Difusão Européia do Livro) em 1966.
  2. Livio Rossetti, “Introdução à Filosofia Antiga: Premissas filológicas e outras ferramentas de trabalho”. Paulus, São Paulo, 2006, pág. 141.
  3. Martin Heidegger, “Über den Humanismus”, Vittorio Klostermann, Frankfurt, 2000, pág. 9.