O morto da discórdia do sistema Cantareira

Por Maurício Tuffani
Operários testam captação de água no sistema Cantareira, em Joanópolis (SP). Imagem: Moacyr Lopes Junior/Folhapress
Operários testam captação de água no sistema Cantareira, em Joanópolis (SP). Imagem: Moacyr Lopes Junior/Folhapress

Depois de divergirem sobre o percentual de água disponível para abastecimento no sistema Cantareira, como mostrou este blog, a Sabesp e o comitê anticrise criado em fevereiro pelos governos estadual e federal têm mais uma discordância. Desta vez, a discrepância não é sobre a forma de cálculo de um indicador. O desacordo está na própria quantidade de água da reserva conhecida como volume morto, que começou a ser usada no dia 15 para garantir a continuidade do abastecimento de cerca de 9 milhões de habitantes da Grande São Paulo.

De acordo com a Sabesp, havia 400 bilhões de litros abaixo dos canos de captação de água dos reservatórios desse sistema até o dia 15. No entanto, essa reserva era de 510,9 bilhões de litros, segundo os registros do comitê, cujo nome oficial é Grupo Técnico para Assessoramento de Gestão do Sistema Cantareira (GTAC Cantareira).

Naquele dia, novas tubulações começaram a funcionar a profundidades maiores, disponibilizando mais 182,5 bilhões de litros para abastecimento. Com esse remanejamento, a reserva restante passou a ser de 217,5 bilhões de litros, segundo a Sabesp. No entanto, o grupo de crise registra um número 51% maior, 328,4 bilhões de litros, como mostra a ilustração a seguir.

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Sorte estranha

Os dados do grupo técnico sobre o volume morto têm sido publicados desde 28 de fevereiro em boletins diários. Apesar disso, o governo do estado vinha divulgando a estimativa da Sabesp semanas antes da entrada em operação das instalações para a captação mais profunda. As obras custaram R$ 80 milhões, segundo a estatal paulista.

A captação de águas mais profundas começou nos reservatórios Jaguari e Juqueri. Ao anunciá-la em cerimônia no dia 15, na cidade de Joanópolis, próxima à divisa com Minas Gerais, o governador Geraldo Alckmin reafirmou, em entrevista coletiva para a imprensa, que a reserva a ser explorada a partir daquele momento continha 400 bilhões de litros.

Questionada sobre a divergência entre seus dados e os do comitê anticrise, a Sabesp respondeu apenas que “não irá discutir os critérios de aferição do volume do sistema Cantareira por meio da imprensa e aguarda a realização da reunião do GTAG para definir a metodologia mais apropriada para tal objetivo”.

Também questionado pela reportagem, o governo do estado, por meio de sua coordenadoria de imprensa, seguiu o posicionamento da empresa. Embora arranhe a confiabilidade da estimativa da estatal paulista, a possibilidade de a reserva ser maior joga em favor do PSDB, que administra o estado há 16 anos e tem sido acusado pelo PT de falta de planejamento para o risco da prolongada estiagem.

Fragilidade de gestão

“A divergência é inaceitável, ainda mais em uma situação crítica, que exige informações seguras para decisões adequadas dos órgãos públicos, como a atual, de estiagem prolongada do sistema Cantareira”, afirmou Malu Ribeiro, coordenadora de recursos hídricos da Fundação SOS Mata Atlântica.

Ao considerar que os dados sobre o volume morto do sistema Cantareira são relevantes para a gestão da situação crítica atual, e que os boletins do GTAG vinham sendo publicados desde fevereiro, a ambientalista ressaltou que os órgãos governamentais que instituíram o grupo de crise deveriam ter constatado a discrepância de informações e tomado providências para saná-la.

A coordenadora da fundação ressaltou que essa divergência evidencia a fragilidade do modelo nacional de gestão de recursos hídricos, cujo órgão de supervisão, controle e avaliação é a ANA (Agência Nacional de Águas), que é vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e tem autonomia administrativa e financeira.

Malu Ribeiro, que também é membro do Conselho Estadual de Recursos Hídricos de São Paulo, afirmou ainda que levará o problema da divergência de dados à próxima reunião desse órgão, na segunda-feira (26), no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual.

O comitê foi criado em fevereiro por meio de resolução conjunta da ANA e do DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica), que é subordinado à Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos do estado. O GTAG é integrado por representantes da ANA, do DAEE, da Sabesp e dos comitês das bacias do Alto Tietê e do PCJ, formada pelos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí.

Até a noite de ontem (quarta-feira, 22.mai), a agência federal e o DAEE não responderam às questões encaminhadas pela reportagem.

Danos ambientais

Uma das possibilidades de explicação para a discrepância entre a Sabesp e o GTAG pode estar nas variações do relevo dos reservatórios, que dificulta a captação em maiores profundidades, segundo Sílvia Gobbo, professora de ecologia e geociências da Universidade Metodista de Piracicaba.

Desse modo, se há mais água do que o previsto em um reservatório, não significa necessariamente que ela pode ser totalmente captada para abastecimento., de acordo com a pesquisadora, que também atua como parecerista do Ministério Público em assuntos relacionados à bacia do PCJ, na qual está situado o sistema Cantareira.

Silvia Gobbo ressaltou, no entanto, que a divergência precisa ser resolvida, pois os dados de volume de água não importam apenas para o abastecimento, mas também para a recuperação do impacto ambiental da seca do sistema Cantareira no âmbito da bacia do PCJ. Ela destacou, como exemplo, a grande mortandade de peixes na região no início deste ano e de outros prejuízos para os ecossistemas locais.