A euforia genética e sua ressaca

Por Maurício Tuffani
Francis Collins (dir.), diretor dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, ao lado de Bill Clinton, na Casa Branca, anunciando a decifração do genoma humano em junho de 2000 (Imagem: AFP)
Francis Collins (dir.), então diretor do Instituto Nacional para Pesquisa do Genoma Humano dos EUA, ao lado do presidente Bill Clinton, em evento de divulgação mundial, na Casa Branca, em junho de 2000. À esquerda está Craig Venter, líder do projeto privado Celera Genomics  (Imagem: AFP)

A edição de hoje da Folha traz uma notícia importante sobre a atitude de cientistas na construção de esperanças da sociedade. É a entrevista “Houve excesso de otimismo com o DNA, diz líder do Projeto Genoma”, feita pelo jornalista Marcelo Leite com uma das maiores autoridades científicas e governamentais do mundo na área da pesquisa em genética médica, Francis Collins, diretor dos NIH (Institutos Nacionais de Saúde) dos Estados Unidos desde 2009.

O otimismo em questão se refere à promessa de uma revolução no tratamento de doenças como câncer, diabetes, mal de Alzheimer, diabetes, artrite reumatoide, lúpus e outras. Essa expectativa foi alimentada na virada do século 20 para o 21 por pesquisadores envolvidos na tarefa de sequenciar as “letras” do código bioquímico de instruções que orientam a formação e o desenvolvimento dos seres humanos. A empreitada começou em 1989, levando à criação e à expansão, nos anos seguintes, do Projeto Genoma Humano (PGH), um consórcio internacional de instituições de pesquisa de 17 países, inclusive o Brasil, com maior participação dos EUA, seguido pelo Reino Unido.

A euforia de cientistas com o projeto aconteceu em livros, artigos de revistas especializadas e declarações para os meios de comunicação em geral. E ela se concretizou na forma de ocorrências justamente daquilo que muitos acadêmicos sempre criticaram e atribuíram a jornalistas na divulgação da ciência para o público não especializado: o uso e o abuso de metáforas e hipérboles e o apelo ao sensacionalismo.

Determinismo

Na verdade, a criação do PGH nos anos 1990 pode ser considerada o marco do começo de uma mudança de atitude da comunidade científica mundial não só na sua comunicação interna, especializada, mas também no relacionamento com a imprensa e outros meios formadores da opinião pública. Em outras palavras, antes mais presas aos reservados padrões acadêmicos, muitas instituições e lideranças científicas passaram a ser geradoras de sensacionalismos na forma de novidades de impacto, especialmente como boas notícias para a saúde humana.

No caso da retórica do PGH, essa atitude foi agravada por ela ter alimentado na opinião pública uma noção que já estava desacreditada nas ciências biológicas, a do determinismo genético. Trocando em miúdos, trata-se da ideia de que “tudo está nos genes”, esvaziando a importância de fatores ambientais no desenvolvimento dos seres vivos.

A compreensão de que o determinismo genético não encontra suporte empírico no conhecimento da natureza foi fortalecida principalmente por pelo trabalho de pesquisadores como o paleontólogo, biólogo evolucionista e divulgador da ciência Stephen Jay Gould (1941-2002).

Caminho do dinheiro

Na entrevista publicada neste sábado (24.mai), Collins observou que a revolução genômica ainda não chegou, apesar da expectativa que houve, e destacou como avanços alcançados os exames para detecção de riscos de diversos tipos de câncer e outras doenças crônicas. Mas em seu reconhecimento de todo o otimismo com o PGH foi muito circunspecto:

“Pode ter havido algumas predições excessivamente otimistas sobre a velocidade com que a informação genômica transformaria a prática da medicina. Eu tentei não fazer essas predições.”

Collins foi comedido ao dizer isso, e não foi por menos. Ele não foi apenas um dos agentes do esforço coletivo de lideranças científicas e instituições de pesquisa na captação de recursos para o PGH. Em junho de 2000, quando ainda era diretor de apenas um dos NIH, o Instituto Nacional para Pesquisa do Genoma Humano, ele esteve ao lado do então presidente dos EUA, Bill Clinton, na Casa Branca, no anúncio mundial da decifração do genoma humano, que contou também com a participação do premiê britânico à época, Tony Blair. Até então já haviam sido investidos cerca de US$ 2 bilhões no projeto internacional.

Promessas ilusórias

Um dos melhores  mapeamentos desse otimismo exagerado —se não for o melhor— foi feito pelo próprio autor da entrevista, Marcelo Leite, em seu livro “Promessas do Genoma” (Editora Unesp, 2007). A obra, que na verdade é uma adaptação da tese de doutoramento em sociologia da ciência, defendida pelo jornalista na Unicamp em agosto de 2005, identifica diversas manifestações dessa retórica otimista, inclusive na forma de hipérboles em relação ao genoma humano como “Livro da Vida” , “Santo Graal”, “Admirável Mundo Novo”, “Nova Era” e várias outras.

Contrastando com a falta de sobriedade dessa retórica não científica de cientistas, o livro analisa com rigor e sobriedade a atitude pública das lideranças do PGH em seus esforços direcionados, sobretudo, à captação de recursos. Uma boa síntese de sua explicação sobre como foi possível a surpreendente reinfiltração do determinismo genético no discurso oficial da biologia justamente quando essa ciência já estava vacinada contra ele está no trecho a seguir (págs. 10-11).

“Nunca um empreendimento tecnocientífico dedicado à vida havia comandado tanta atenção e energia na esfera pública, prerrogativa até então das outras engenharias —as que produziam bombas e usinas atômicas, ou foguetes para alcançar a Lua. A simples idéia de uma tecnologia da vida, de uma bio-tecnologia, aliada à sua materialização em escala industrial, tocou um nervo de imaginação e ansiedade, que diz mais sobre os vasos capilares propagados pelo conhecimento biológico no tecido da cultura contemporânea do que sobre os resultados propriamente ditos da pesquisa biomolecular e genômica.
“Era e continua sendo necessário entender como e por que as tecnologias da vida desencadearam tanta comoção. A comoção e a aceitação públicas produzidas pelo Projeto Genoma Humano só se explicam pela mobilização retórica e política, nas interfaces com a esfera pública leiga, de um determinismo genético crescentemente irreconciliável com os resultados empíricos obtidos no curso da própria pesquisa genômica.”

Para evitar armadilhas das motivações extracientíficas que induzem a roubadas como essa, a receita mais eficaz é a crítica social por meio do “ceticismo radical e da incansável verificação empírica —as armas da ciência em seu sentido mais amplo—”, como diz Marcelo Leite nessa obra (pág. 230) que, como eu já afirmei em uma resenha na época de seu lançamento, merece tradução para outras línguas e é leitura obrigatória para pesquisadores e divulgadores de ciência.

Não se trata aqui de desqualificar os objetivos do Projeto Genoma Humano ou dos milhares de pesquisadores e demais técnicos envolvidos nesse empreendimento. Essa linha de investigação precisa ser levada adiante e continuar a receber suporte financeiro. Mas a sociedade deve ser informada de forma intelectualmente honesta sobre os meios, os objetivos e, se possível, as metas de projetos científicos.