A crise da USP e a autonomia universitária

Por Maurício Tuffani
Praca do Relógio, no câmpus da USP em São Paulo. Imagem: Christian von Ameln/Folhapress
Praca do Relógio, no câmpus da USP em São Paulo. Imagem: Christian von Ameln/Folhapress

Em seu artigo “Orçamento e responsabilidade”, publicado nesta segunda-feira na Folha, o atual reitor da USP, Marco Antonio Zago, criticou as explicações para o estouro orçamentário dadas por seu antecessor, João Grandino Rodas (2009-2013), no texto “O orçamento da USP”, no mesmo jornal  (21.mai).

Zago acertou ao destacar que a inflação medida pela Fipe no período de 2009 a 2013 foi de 23% e que os reajustes nos salários da Unesp, Unicamp e USP no mesmo período atingiram 29%. E tem razão ao apontar a necessidade de sua universidade, no processo de revisão de seu estatuto, incorporar o princípio da responsabilidade fiscal.

Modelo de autonomia

Mas o problema não é só da USP. Há, na verdade, uma outra revisão que pode ser feita, inclusive de modo a incorporar esse mesmo princípio a uma solução mais ampla. Trata-se de rever o modelo de financiamento das três universidades estaduais paulistas, criado em 1989 para garantir a a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial estabelecida pelo artigo 207 da Constituição Federal.

Desde 1995 esse modelo assegura para essas instituições o repasse de 9,57% do ICMs. Aplicado esse percentual, o montante previsto para este ano é de R$ 11,7 bilhões. Apesar da garantia prevista na Constituição para todas as universidades, as três estaduais paulistas são as únicas do Brasil que efetivamente gozam plenamente dessa autonomia.

Em 2 de fevereiro de 2009, quando a Unesp, a Unicamp e a USP comemoraram 20 anos do decreto que disciplinou o fluxo financeiro para garantir a autonomia dessas instituições, seus reitores publicaram no jornal “O Estado de S. Paulo” o artigo “Um modelo de sucesso”. O texto tomou como referência o crescimento real, até então, de 37% da dotação orçamentária das três universidades estaduais paulistas desde 1989.

Os reitores destacaram, no mesmo período, os aumentos de 85% do número de alunos matriculados na graduação, de 86% nos mestrados e de 229% nos doutorados. E ressaltaram que às três instituições correspondia 44% de toda a produção nacional de trabalhos científicos de padrão internacional. Os três dirigentes enfatizaram que a indissociabilidade entre a conquista desses resultados e o modelo de autonomia que comemoravam.

Limite para despesas

No entanto, em fevereiro deste ano completaram-se 25 anos desse modelo que garantiu às três instituições serem as únicas do país a terem a autonomia estabelecida constitucionalmente. Mas não houve clima para comemoração da efeméride. Era  questão de tempo a revelação para a opinião pública de que a Unesp e a Unicamp também caminhavam para o mesmo tipo de comprometimento orçamentário da USP.

Em 21 de maio, ao reiterar sua decisão de congelar neste ano os salários dos professores e demais funcionários das três instituições, o Cruesp (Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas) ressaltou em comunicado que o gasto do orçamento com folha de pagamento até abril deste ano mostraram comprometimento 95,42% na Unesp, 97,33% na Unicamp.

Desse modo, torna-se cada vez mais claro que faltou ao modelo de autonomia universitária paulista a fixação de um teto para despesas com pessoal e encargos. E não foi por falta de exemplo, ainda que de outro tipo de instituição. Criada por lei em 1960, e também autônoma, a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), já nasceu com o limite máximo de 5% de sua dotação orçamentária para o montante de suas despesas administrativas.

Vício de origem

Em entrevista publicada no domingo (25.mai) pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, o físico José Goldemberg, ex-reitor da USP, lamentou não ter proposto esse tipo de limite para o governador Orestes Quércia (1987-1991) nas negociações para o decreto que estabeleceu o modelo de financiamento das universidades estaduais paulistas.

A afirmação de Goldemberg soa estranha para quem acompanhou o início dessa história  —como eu, que era repórter de Educação e Ciência da Folha. Os desentendimentos entre os três reitores nos dias posteriores à assinatura do decreto evidenciaram, entre outras constatações, a falta de qualquer perspectiva de teto para folha de pagamento.

Em 14 de fevereiro de 1989, a reportagem “Autonomia ameaça orçamento das universidades estaduais” (pág. C-7) mostrou que os valores estabelecidos com a aplicação do decreto nem sequer cobriam as despesas de pessoal. Inclusive da própria USP, que abocanhara a maior parte dos 8,4% da arrecadação do ICMS destinados pelo decreto para as três universidades.

A instituição ficara com 4,46%, a Unicamp, com 2%, e, a Unesp, com 1,96%. Desde 1995, passou a vigorar a definição da dotação das três universidades em 9,57% do ICMS, distribuídos em 2,3447% para a Unesp, 2,1958% para a Unicamp e 5,0295% para a USP. Esse quinhão maior —desde o início considerado pelas duas irmãs menores desproporcional às necessidades da maior— assegurou em poucos anos uma reserva financeira que proporcionou uma agilidade ainda maior que a prevista na autonomia.

Fora de controle

Em 2005 Unesp, Unicamp e USP começaram a atuar em sintonia para reduzir o patamar de 90% de seus orçamentos empregados em folha de pagamento. A tendência de expansão desse comprometimento ameaçava pesadas restrições para custeios e investimentos nos anos seguintes.

As três instituições conseguiram em 2010 baixar esse comprometimento para aproximadamente 80%. E previam uma nova elevação, mas controlada, para a implantação de planos de carreira de professores e demais funcionários. Mas em 2012 a USP já havia fugido ao controle, como mostra a tabela a seguir.

Tabela-Cruesp_2007-2013

PT versus PSDB

O comprometimento da dotação orçamentária da USP com salários foi acelerado na gestão Rodas. O novo reitor reajustou benefícios antes das negociações nos períodos de dissídios salariais e sem a participação no Cruesp, que desde o início da autonomia passou a ser a instância de entendimento entre os reitores e os sindicatos de professores e servidores técnico-administrativos.

Ficou evidente desde esse começo o objetivo de evitar greves. Rodas foi escolhido pelo então governador de São Paulo, José Serra (PSDB), apesar de ter sido o segundo mais votado pelo colégio eleitoral da USP para a lista tríplice encaminhada ao chefe do Executivo em novembro de 2009. Antes mesmo de tomar posse, o reitor nomeado passou a ser sistematicamente alvejado pela militância do PT e de outros partidos e entidades de oposição, que tradicionalmente têm grande poder de mobilização nas universidades brasileiras.

‘Comprar greve’

Logo nos primeiros meses de seu mandato, o reitor surpreendeu não só seus colegas do Cruesp, mas também os próprios sindicalistas da USP. A começar pelo aumento de 17,5% do benefício para alimentação, superior ao índice de 15,85% do DIEESE para cesta básica. Magno Carvalho, diretor do Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da USP), em entrevista ao “Jornal do Campus” em maio de 2010, declarou:

“O reitor está subestimando o movimento e tentando comprar a nossa greve. Estava decidido que não haveria discussão sobre as pautas específicas antes da negociação da pauta unificada, que é a isonomia salarial.”

Por ter antecipado e ampliado despesas mensais de caráter permanente, as alegações de Grandino Rodas em seu artigo não se sustentam. Além disso, a estratégia antigreve também enfraqueceu a margem de negociação das outras duas universidades, que passaram a ser pressionadas a seguir os reajustes da USP.

De fato, se algo faltou no modelo paulista de autonomia universitária, foi um teto para o comprometimento do orçamento com despesas com pessoal e encargos.

Enquanto isso…

No mesmo dia 21, em que Rodas publicou seu artigo e o Cruesp emitiu seu comunicado mais recente, reitores de 62 universidades federais e diretores da Andifes (Associação Nacional de Dirigentes da Instituições Federais de Ensino Superior) estiveram em um evento com a presidente Dilma Rousseff. Em seu discurso, Jesualdo Pereira Farias, reitor da Universidade Federal do Ceará e presidente da Andifes, confirmou que a entidade apresentará ao governo federal uma proposta de modelo de autonomia.

Farias não deu detalhes sobre a proposta. Mas já é de conhecimento de muitos dos reitores federais que o modelo em elaboração terá previsão de teto para o comprometimento orçamentário com gastos de pessoal. Um dos limites propostos para despesas com folha de pagamento é de 75%.

A autonomia universitária paulista pode não ter se mirado no exemplo da Fapesp. Não sabemos ainda como o governo federal reagirá à proposta da Andifes. Mas esta pelo menos evitou o contra-exemplo paulista e, sobretudo, o uspiano.

PS — Antes que me perguntem por que não comentei nada sobre o artigo dos presidentes dos sindicatos de professores da Unesp, Unicamp e USP, também publicado no dia 21: observo apenas que o texto não faz a menor menção a deveres ou obrigações das três universidades com a sociedade que as financia. E basta.

Correção (26.mai, 11h10) — No terceiro parágrafo após o intertítulo “Vício de origem”, foi corrigida para 1989 a indicação errônea de 2009 como ano da reportagem mencionada nesse trecho.