A distinção entre o ensino superior em geral e a formação e o que é oferecido por universidades poderia ajudar a tornar mais produtiva a discussão sobre a proposta de cobrar mensalidades de alunos da USP. A ideia, surgida inicialmente em função da crise financeira dessa instituição, passou a ser motivada também pelo aspecto da justiça social, pois a universidade, que é mantida com recursos públicos, oferece muitos dos melhores cursos de graduação do país, mas no acesso a eles acabam levando vantagem os alunos de com maior renda familiar.
A formação superior tem sido um dos principais fatores do acesso a níveis salariais mais elevados. Além disso, em cidades de menor porte, a presença de faculdades ou de universidades também tem ajudado a aquecer a economia local. Por essas razões, em todo o país prefeitos, vereadores e deputados têm reivindicado a reitores e aos governos estaduais e federais a criação de um campus de alguma universidade em seus municípios.
O atendimento dessas reivindicações geralmente esbarra em dificuldades que transcendem o problema da disponibilidade de recursos. A criação de novas unidades de ensino em universidades exige, além de tudo o que é necessário para uma faculdade isolada, infraestrutura de pesquisa e de pós-graduação.
Distribuição
Nas últimas décadas, foi grande a proliferação do Brasil de universidades. E por diversos motivos, desde a autonomia didático-pedagógica estabelecida pelo artigo 207 da Constituição Federal —que poupa essas instituições de boa parte da discricionaridade do Ministério da Educação— às vantagens empresariais de contar com a maior diversidade de cursos, no caso das particulares.
Os dados mais recentes do Censo da Educação Superior, do Inep (Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), do Ministério da Educação, indicam que em 2011 havia 6,74 milhões de matrículas em cursos de graduação. Desse total, 4,87 milhões estavam no ensino superior privado e 1,87 milhão, ou seja, pouco mais de um quarto, estava em instituições públicas federais, estaduais e municipais
Dentro desse 1,87 milhão de matrículas no ensino superior público, 1,62 milhão (86,7%), estava em universidades. As 249 mil restantes (13,3%) estavam divididas em centros universitários, faculdades e institutos federais (IFs) e centros federais de formação tecnológica (Cefets), como mostram os percentuais da tabela a seguir.
Critérios de distinção
O que distingue as universidades entre as instituições de ensino superior em geral são as condições definidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em seu artigo 52.
Art. 52. As universidades são instituições pluridisciplinares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano, que se caracterizam por:
I – produção intelectual institucionalizada mediante o estudo sistemático dos temas e problemas mais relevantes, tanto do ponto de vista científico e cultural, quanto regional e nacional;
II – um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado;
III – um terço do corpo docente em regime de tempo integral.
Parágrafo único. É facultada a criação de universidades especializadas por campo do saber.
Na vida como ela é, essas condições muitas vezes não são respeitadas por universidades particulares, cujos quadros de professores nem sempre alcançam os mínimos exigidos para titulação e regime de tempo integral.
Cumprindo tabela
Muitas das universidades públicas conseguem atender a essas condições, pois contam com recursos da União ou dos estados para cobrir folha de pagamento. Mas o conseguem “cumprindo tabela”. Não é rara, entre pesquisadores que lidam com avaliações de desempenho de instituições e também de profissionais, a convicção de que muitos programas de pós-graduação deixam a desejar e de que os números da crescente produção científica brasileira mascaram uma grande desigualdade de desempenho.
A comprovação dessa desigualdade está na elevada participação das três universidades estaduais paulistas na produção científica brasileira. Nos últimos anos, Unesp, Unicamp e USP têm publicado juntas mais de 40% de todos os artigos científicos indexados na base Web of Science, que são aqueles com maior repercussão na comunidade acadêmica internacional .
Custos da pesquisa
Essa desigualdade na produtividade científica leva a uma importante consideração referente ao custo dessa atividade. Não dá para comparar a estrutura de faculdades isoladas e até de muitas universidades com as da USP, da Unesp, da Unicamp e de universidades federais como a de São Paulo (Unifesp), do Rio de Janeiro (UFRJ), de Minas Gerais (UFMG), do Rio Grande do Sul (UFRGS) e poucas outras que possuem efetivamente uma infraestrutura de pesquisa.
Dizendo de outro modo, uma coisa é considerar o financiamento de instituições cujas despesas compreendem basicamente salários de professores e demais funcionários e o custeio em geral. Outra coisa é dimensionar as contas de universidades que além de salas de aula, bibliotecas e dependências administrativas, têm também laboratórios científicos de grande porte, fazendas experimentais, hospitais —inclusive veterinários—, biotérios, observatórios astronômicos e, em alguns casos, aceleradores de partículas e até instalações nucleares.
No Brasil, assim como em todos os países do mundo, nenhuma universidade consegue manter estruturas como essas somente com cobrança de mensalidades e arrecadação de doações. O desenvolvimento de projetos de pesquisa e a manutenção de laboratórios e outros tipos de instalações para esse tipo de atividade acadêmica depende sempre de recursos públicos, inclusive nos Estados Unidos.
Formação profissional
O que a maior parte de nossos municípios e de nossa população precisa, e com urgência, é de cursos de graduação de qualidade para formar profissionais para o mercado de trabalho. Em São Paulo, a Unesp, a Unicamp e a USP levaram mais de duas décadas a partir do final dos anos 1980 para quase dobrar seu total de matrículas em cursos de graduação. Grande parte dessa expansão ocorreu por iniciativa do governo estadual em 2001, trazendo grandes benefícios para a formação de nível superior em diversos municípios. Mas trouxe também dificuldades para a consolidação de unidades criadas em localidades onde essas instituições ainda não estavam presentes.
Mas, também em São Paulo as Fatecs (faculdades de tecnologia) do Centro Paula Souza, do governo estadual, em sete anos aumentaram para mais que o triplo seu número de alunos. Em 2007, o centro tinha 29 unidades com 32 cursos e 19 mil alunos. No início deste ano, essa rede se expandiu para 59 unidades com 65 cursos e 69 mil matriculados
Assim como os Cefets, destacados na tabela acima como 1,4% das instituições de ensino superior do após, as Fatecs paulistas são excelentes exemplos de formação de qualidade oferecida pelo poder público, que têm atingido boas classificações em avaliações de desempenho como o Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes).
Plano Nacional
Aprovado recentemente pelo Congresso e já enviado para a sanção presidencial, o projeto de lei 8.035 de 2010, do PNE (Plano Nacional da Educação), prevê expandir até 2020 em 50% a taxa bruta de matrículas no ensino superior, ou seja, aumentar o correspondente à metade da atual capacidade de vagas, “assegurando a qualidade da oferta”.
No texto votado, nenhum dispositivo estabelece a opção de não adotar o modelo universitário como primeira possibilidade a ser considerada na implantação de novas unidades de ensino superior. Consta apenas, para alcançar essa meta de 50% de ampliação, a estratégia de número 12.14:
Mapear a demanda e fomentar a oferta de formação de pessoal de nível superior considerando as necessidades do desenvolvimento do País, a inovação tecnológica e a melhoria da qualidade da educação básica.
Em outras palavras, o que poderia ter sido uma prioridade clara de nossos legisladores pelo menos até 2020 para a expansão mais rápida do ensino superior de qualidade e voltado para o mercado de trabalho, foi deixado por conta da vontade política de nossos governantes.
A formação profissional técnica ou de professores para o ensino básico por meio de faculdades desvinculadas de universidades é uma alternativa viável para a expansão do ensino superior público de qualidade. A clareza na distinção entre esses dois modelos pode ser útil neste momento em que a discussão sobre a USP pode trazer implicações para todas as universidades estaduais e federais brasileiras.