As elites e a moral do ressentimento

Por Maurício Tuffani
"Senadores romanos", ilustração satírica de 1991 de Alexander Yevgenievich Yakovlev (1887-1938). Imagem: Reprodução
“Senadores romanos”, ilustração satírica de 1991 de Alexander Yevgenievich Yakovlev (1887-1938). Imagem: Reprodução

Faz muito tempo que por toda parte se tornou de bom-tom assumir uma atitude negativa em relação ao que se convencionou chamar de “elite”. Para desaprovar, criticar ou até mesmo iniciar uma campanha contra o comportamento ou a opinião de alguém, basta caracterizar por meio desse substantivo o alvo pretendido.

No Brasil, grande parte das reações aos xingamentos contra a presidente Dilma Rousseff, na abertura da Copa do Mundo, tem sido exemplo mais recente de forte apelo a esse argumento. Não pretendo aqui entrar em questões como o que é elite e se nesse rótulo podem ou não ser considerados aqueles que ofenderam a chefe de Estado.

Curiosamente, como mostrou em 11 de maio de 1993 a reportagem da Folha “Itamar chama Lula de arrogante e elitista”, o próprio líder petista foi qualificado por meio desse rótulo pelo então presidente Itamar Franco, em nota oficial na qual se pronunciou sobre o fato de ter sido ofendido por meio da tradicional e espúria alusão à mãe. Isso mostra que o uso desse termo contra adversários em disputa não é exclusividade daqueles que seriam mais próximos das camadas mais populares e que, portanto, nada teriam a ver com os significados sócio-econômicos e culturais de elite.

Falácia lógica

Os mais cuidadosos com a lógica sempre foram reticentes a esse tipo de rotulação. Para eles, tal procedimento não passa de um apelo à emotividade para obstruir a reflexão, envolvendo, entre outras falácias, aquela que há séculos é chamada de “argumentum ad populum”. Uma de suas mais consagradas explicações está nas seguintes palavras do lógico e matemático norte-americano Irving Copi.1

“Podemos definir o ‘argumentum ad populum’ de um modo mais circunscrito como a tentativa de ganhar a concordância popular para uma conclusão, despertando as paixões e o entusiasmo da multidão.”1

Não há como duvidar de que, qualquer que seja o significado de “elite”, essa palavra sempre terá grande chance de eficácia ao ser usada “ad populum”. Mas a lógica não explica, no entanto, por que acontece a ampla rejeição da maioria das pessoas a tudo que é considerado por meio desse termo.

Valores morais

Há quase 150 anos o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) deu uma excelente contribuição para a compreensão da gênese dos valores morais embutidos ao longo de toda a história da civilização. E não só no pensamento e no comportamento da sociedade em geral, mas também de intelectuais, que quase sempre se propõem a ser os mais críticos, e daqueles que fazem a ciência.

Em sua “Genealogia da Moral” (§ 6), o pensador definiu esse seu trabalho como uma “crítica dos valores morais” que colocava em questão o próprio valor desses valores morais. Seria, segundo ele, um conhecimento que até então nunca teria existido nem teria sido desejado.

Todas as expressões morais sempre evidenciaram duas tipologias básicas, a moral de senhores e a moral de escravos, ressaltou Nietzsche em “Além do Bem e do Mal”(§ 260) . Desde o início da civilização, mesmo em sociedades sem a presença da escravidão, as manifestações morais por meio das diferentes formas de expressões culturais sempre evidenciaram esses dois tipos, tanto em antagonismos explícitos como em buscas pelo meio-termo entre eles, ou até coexistindo contraditória e inconscientemente em uma mesma pessoa, filosofia ou instituição.

Referência fora de si

No âmago da moral de senhores está a determinação pelo próprio homem de seu valor como “bom”. O homem nobre, segundo Niezsche, não tem necessidade de ser chancelado por outro, ele gera seus próprios valores e, sobretudo, afasta de si tudo o que considera “ruim”. Por outro lado, a moral de escravos é fundada na negação do homem do que ele considera “mau” para, a partir dessa negação, ele se considerar “bom”.

“Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ —e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores —este necessário dirigir-se para fora em vez de voltar-se para si— é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para agir em absoluto —sua ação é no fundo reação.” (“Genealogia da Moral”, § 10)2

Desse modo, “bom” é o que se opõe a “ruim” para o homem que cria seus próprios valores, ao passo que é o oposto de “mau” para a alma que não tem referência em si mesma.

Não se trata aqui de tomar partido entre a moral de senhor e a moral de escravos, pois isso seria optar por ser sintoma e renunciar ao esforço de compreensão. Concordemos ou não com essas e outras provocações de Nietzsche, não há como simplesmente desconsiderá-las.  A não ser sob o risco permanente de um armário cada vez mais abarrotado de esqueletos não só na cultura em geral, mas também na política, onde o recorrente apelo às elites pode implicar projetos para o futuro da sociedade contaminados pela moral do ressentimento, trazendo embutida sua referência naquilo que odeia.

Por que este assunto neste blog cujo foco principal é a ciência? Porque esse armário cheio de esqueletos é compartilhado também pela filosofia e pelas ciências humanas, cujo foco nas elites muitas vezes tem se mostrado mais como sintoma da moral do ressentimento do que como esforço de análise.

Referências

  1. Irving M. Copi, “Introdução à Lógica”, tradução de Álvaro Cabral, Editora Mestre Jou, São Paulo, 1974, págs. 79-80.
  2. Friedrich Nietzsche, “Genealogia da Moral”, tradução de Paulo César de Souza, Companhia das Letras, São Paulo, 2009, p. 26.