Faz muito tempo que por toda parte se tornou de bom-tom assumir uma atitude negativa em relação ao que se convencionou chamar de “elite”. Para desaprovar, criticar ou até mesmo iniciar uma campanha contra o comportamento ou a opinião de alguém, basta caracterizar por meio desse substantivo o alvo pretendido.
No Brasil, grande parte das reações aos xingamentos contra a presidente Dilma Rousseff, na abertura da Copa do Mundo, tem sido exemplo mais recente de forte apelo a esse argumento. Não pretendo aqui entrar em questões como o que é elite e se nesse rótulo podem ou não ser considerados aqueles que ofenderam a chefe de Estado.
Curiosamente, como mostrou em 11 de maio de 1993 a reportagem da Folha “Itamar chama Lula de arrogante e elitista”, o próprio líder petista foi qualificado por meio desse rótulo pelo então presidente Itamar Franco, em nota oficial na qual se pronunciou sobre o fato de ter sido ofendido por meio da tradicional e espúria alusão à mãe. Isso mostra que o uso desse termo contra adversários em disputa não é exclusividade daqueles que seriam mais próximos das camadas mais populares e que, portanto, nada teriam a ver com os significados sócio-econômicos e culturais de elite.
Falácia lógica
Os mais cuidadosos com a lógica sempre foram reticentes a esse tipo de rotulação. Para eles, tal procedimento não passa de um apelo à emotividade para obstruir a reflexão, envolvendo, entre outras falácias, aquela que há séculos é chamada de “argumentum ad populum”. Uma de suas mais consagradas explicações está nas seguintes palavras do lógico e matemático norte-americano Irving Copi.1
“Podemos definir o ‘argumentum ad populum’ de um modo mais circunscrito como a tentativa de ganhar a concordância popular para uma conclusão, despertando as paixões e o entusiasmo da multidão.”1
Não há como duvidar de que, qualquer que seja o significado de “elite”, essa palavra sempre terá grande chance de eficácia ao ser usada “ad populum”. Mas a lógica não explica, no entanto, por que acontece a ampla rejeição da maioria das pessoas a tudo que é considerado por meio desse termo.
Valores morais
Há quase 150 anos o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) deu uma excelente contribuição para a compreensão da gênese dos valores morais embutidos ao longo de toda a história da civilização. E não só no pensamento e no comportamento da sociedade em geral, mas também de intelectuais, que quase sempre se propõem a ser os mais críticos, e daqueles que fazem a ciência.
Em sua “Genealogia da Moral” (§ 6), o pensador definiu esse seu trabalho como uma “crítica dos valores morais” que colocava em questão o próprio valor desses valores morais. Seria, segundo ele, um conhecimento que até então nunca teria existido nem teria sido desejado.
Todas as expressões morais sempre evidenciaram duas tipologias básicas, a moral de senhores e a moral de escravos, ressaltou Nietzsche em “Além do Bem e do Mal”(§ 260) . Desde o início da civilização, mesmo em sociedades sem a presença da escravidão, as manifestações morais por meio das diferentes formas de expressões culturais sempre evidenciaram esses dois tipos, tanto em antagonismos explícitos como em buscas pelo meio-termo entre eles, ou até coexistindo contraditória e inconscientemente em uma mesma pessoa, filosofia ou instituição.
Referência fora de si
No âmago da moral de senhores está a determinação pelo próprio homem de seu valor como “bom”. O homem nobre, segundo Niezsche, não tem necessidade de ser chancelado por outro, ele gera seus próprios valores e, sobretudo, afasta de si tudo o que considera “ruim”. Por outro lado, a moral de escravos é fundada na negação do homem do que ele considera “mau” para, a partir dessa negação, ele se considerar “bom”.
“Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ —e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores —este necessário dirigir-se para fora em vez de voltar-se para si— é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para agir em absoluto —sua ação é no fundo reação.” (“Genealogia da Moral”, § 10)2
Desse modo, “bom” é o que se opõe a “ruim” para o homem que cria seus próprios valores, ao passo que é o oposto de “mau” para a alma que não tem referência em si mesma.
Não se trata aqui de tomar partido entre a moral de senhor e a moral de escravos, pois isso seria optar por ser sintoma e renunciar ao esforço de compreensão. Concordemos ou não com essas e outras provocações de Nietzsche, não há como simplesmente desconsiderá-las. A não ser sob o risco permanente de um armário cada vez mais abarrotado de esqueletos não só na cultura em geral, mas também na política, onde o recorrente apelo às elites pode implicar projetos para o futuro da sociedade contaminados pela moral do ressentimento, trazendo embutida sua referência naquilo que odeia.
Por que este assunto neste blog cujo foco principal é a ciência? Porque esse armário cheio de esqueletos é compartilhado também pela filosofia e pelas ciências humanas, cujo foco nas elites muitas vezes tem se mostrado mais como sintoma da moral do ressentimento do que como esforço de análise.
Referências
- Irving M. Copi, “Introdução à Lógica”, tradução de Álvaro Cabral, Editora Mestre Jou, São Paulo, 1974, págs. 79-80.
- Friedrich Nietzsche, “Genealogia da Moral”, tradução de Paulo César de Souza, Companhia das Letras, São Paulo, 2009, p. 26.