Acaba de ser anunciada mais uma peça do complicado quebra-cabeças para entender questões como quem somos, de onde viemos e, talvez, para onde vamos. A novidade está na reportagem desta sexta-feira, na Folha, “Caverna na Espanha é berço de neandertais, indica pesquisa”, do jornalista Reinaldo José Lopes.
A notícia mostra que já existe uma datação mais precisa de um dos mais importantes sítios paleoantropológicos do mundo, e também a esperança de serem encontradas amostras de DNA de pré-neandertais um pouco mais antigas do que aquela de 400 mil anos, noticiada no ano passado. Como explica a reportagem, esses resultados são de uma pesquisa coordenada por Juan-Luis Arsuaga, paleoantropólogo da Universidade Complutense de Madri.
Arsuaga escreveu em 1999 um ótimo livro que publicado no Brasil em 2005, “O Colar do Neandertal: Em busca dos primeiros pensadores”. Nós, leitores brasileiros, temos o privilégio de essa edição ter sido revisada e comentada por meio de uma apresentação e notas do paleoantropólogo Walter Neves, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP, pesquisador de grande respeitabilidade e prestígio internacional nessa área de estudos.
O livro ficou desatualizado em relação às datações do sítio de Sima de los Huesos, no qual trabalha o autor com sua equipe, que fica perto de Burgos, na Espanha. Além disso, como se constatou nessa pesquisa do ano passado, os fósseis da caverna estudada não são de neandertais nem do Homem de Heidelberg, como se pensava, mas de uma linhagem de pré-neandertais.
Em conversa hoje por telefone, Walter Neves me confirmou serem apenas esses dois os principais pontos desatualizados do livro. Desse modo, à luz das informações trazidas por esses estudos mais recentes, vale a pena ler a obra.
Defeito cognitivo
Mesmo discordando de algumas posições de Arsuaga, Neves não economiza elogios à obra por sua riqueza das informações e pela qualidade literária de sua narrativa. Desse modo, poupo o leitor de minhas considerações e copio a seguir as do próprio pesquisador espanhol sobre o desenvolvimento da cognição e da linguagem dos neandertais.
“Nós, os humanos modernos, somos primatas, inclusive podemos dizer humanos, extraordinariamente sociais, e estamos muito atentos, de forma permanente, aos sinais que nos chegam dos outros humanos — sinais que nos ajudam a ler as suas mentes e prever os seus atos. Para sermos mais eficazes, reagimos prontamente diante de estímulos muito simples e isolados. Escrutamos com tanta intensidade a cara dos nossos congêneres que avaliamos nela até o mais leve signo de mudança. A vida social é uma grande partida de truco.”
(…) É tão grande a nossa capacidade de análise, quer dizer, de decomposição da realidade em partes cada vez menores, que acabamos cometendo falhas estrepitosas de interpretação apesar das nossas portentosas faculdades cognitivas, equívocos que nenhum outro animal cometeria. Assim, os objetos mais surpreendentes recebem valores emocionais, porque erroneamente se atribuem a eles qualidades humanas (…). Os arcos dos supercílios da águia parecem rugas da testa, e, junto com a comissura da boca esticada para trás, proporcionam ao animal uma aparência de obstinada determinação. Como o camelo ou a lhama têm a cabeça alta, com o orifício nasal acima do olho, e a comissura da boca baixa, parece que nos olham com desdém: são animais que aparentam ‘antipatia’.” (págs. 330-331)
Extinção
Após cerca de dez mil anos de coexistência na Europa e Ásia com nossos ancestrais Homo sapiens que vieram da África, o Homo neanderthalensis desapareceu quando começou o período mais duro da última glaciação, há aproximadamente 30 mil anos. E ainda não sabemos com certeza como nem por que. Temos apenas hipóteses, como a da reportagem “Neandertal desapareceu devido aos olhos grandes, diz estudo” (14.mar.2013).
Somos desde então os únicos hominídeos que restaram no planeta. Arsuaga chega a dar para a extinção dos neandertais uma pista relacionada a essa diferença cognitiva entre a nossa espécie e a deles quando afirma
“A grande vantagem que derivou deste peculiar defeito é que ajudou o homem a entender os fenômenos naturais. Se a consciência individual surgiu porque é útil olhar as coisas desde o ponto de vista do outro, a quem também se atribui consciência, o colocar-se no lugar dos demais seres da natureza, quer dizer, reconhecer que têm consciência, é uma forma não-científica, mas eficaz, de fazer Biologia e Geologia. E também Geografia, porque a melhor maneira de se gravar na mente um mapa, e de compartilhá-lo com os demais membros da comunidade, é associando os elementos da paisagem a personagens e histórias.” (pág. 332)
Enfim, somos uma espécie quase incapaz de ver sem atribuir significados automaticamente ao que vê ou seja, com muita dificuldade de nos manter no estado mental semelhante ao que buscam os adeptos de diferentes formas de meditação. E sobrevivemos, apesar dessa “incapacidade” ou talvez justamente graças a ela. Desse modo, vale a pena pensar sobre o que talvez nossa trajetória evolutiva nos teria negado em capacidade cognitiva. Em outras palavras, quem não somos nós?
Referência
Juan-Luis Arsuaga, “O Colar do Neandertal: Em busca dos primeiros pensadores”, tradução de André de Oliveira Lima, apresentação e revisão técnica de Walter Alves Neves, Editora Globo, São Paulo, 2005, 349 págs.