Para muitos escoceses, ontem (24.jun) foi um dia para uma dupla comemoração. A desclassificação da Inglaterra na Copa do Mundo após o empate com a Costa Rica, no Mineirão, não foi o único grande assunto de hoje nos jornais da Escócia. A imprensa do país dos antigos guerreiros highlanders destacou também as comemorações dos 700 anos da batalha de Bannockburn, que se tornou mais conhecida no mundo como aquela do final do filme “Coração Valente” (“Braveheart”), de 1995.
Naquele 24 de junho de 1314, cerca de 9 mil homens sob o comando do rei Robert 1º, mais conhecido como Robert The Bruce (1274-1329), derrotaram um contingente bem maior —aproximadamente 25 mil soldados ingleses liderados pelo rei Edward 2º (1284-1327), que no filme foi mostrado como o filho gay de Eduardo 1º, vulgo “Longshanks“ (“Pernas Longas”), também conhecido como Edward “Hammer off the Scotts” (“Martelo dos Escoceses”).
O filme ajudou a reforçar a fama de Longshanks de rei mais cruel da história da Inglaterra. Seu domínio sangrento se estendeu não só sobre a Escócia, mata também sobre o País de Gales. Ele desprezava seu filho por considerá-lo um fraco —e parece que pelo menos do ponto de vista político os historiadores concordam com ele — e suspeitava de o jovem ser amante de um nobre francês que frequentava sua corte, Piers Gaverston (1284-1312). (Este não foi jogado por Longshanks do alto do castelo real, como foi mostrado em “Coração Valente”. Na verdade, ele foi assassinado aos 28 anos, já no reinado de Edward 2º, por um cavaleiro que rivalizava com ele a atenção do jovem monarca.)
Estratégia
A batalha de Bannockburn é importante na história da Escócia por ter marcado a retomada da reação escocesa contra os ingleses, iniciada em 1296 pelo plebeu Uilleam Uállas (c. 1272-1305) —nome em gaélico escocês, mais conhecido como William Wallace, representado no filme por Mel Gibson.
Na verdade, essa batalha não teve nada a ver com a famosa cena final do filme. Ela não aconteceu em belo campo gramado e aberto, nem foi provocada por um ímpeto de Robert The Bruce, como se ele, de repente, tivesse perdido a paciência com a vergonha de sua subjugação à Inglaterra e decidido partir para o ataque.
O combate foi meticulosamente preparado pelos escoceses, da mesma forma que outra famosa batalha, a de Stirling, em 11 de setembro de 1297. Nela, Wallace foi um dos líderes de aproximadamente 2 mil homens e mais 300 cavaleiros que esperaram o melhor momento para ao atacar uma força inglesa muito superior —cerca de 8 mil soldados a pé e de pelo menos outros mil de cavalaria—, durante a passagem por uma ponte sobre o rio Forth.
Em Bannockburn, em 23 de junho, ao anoitecer, os escoceses surpreenderam os ingleses em um terreno pantanoso situado entre dois rios, cujo local exato hoje é controverso, em um combate durou até o dia seguinte. Da mesma forma que em Stirling, os atacantes empregaram em pontos estratégicos as formações de combate conhecidas como schiltrons, que tinham milhares de homens armados com lanças de cerca de 12 metros, formando círculos que cercavam e massacravam as tropas inimigas.
Em 1320, seis anos depois de Bannockburn, o país passou a ser considerado independente com a Declaração de Arbroath, que foi reforçada pelo reconhecimento de Robert The Bruce como rei pelo papa João 22. Ou seja, seus descendentes passaram a ter a chancela da Igreja para fins de sucessão.
Orgulho nacional
Apesar de toda essa importância, os eventos de comemoração do sétimo centenário da batalha não tiveram muita presença, como mostrou nesta quarta-feira a reportagem do diário “The Scotsman”. A matéria destacou a afirmação de Fiona Hyslop, deputada do Partido Nacional Escocês e ministra da Cultura e Assuntos Externos”, de que
“A Batalha de Bannockburn foi muito importante não só para a definição do futuro da Escócia, mas também por refletir a psique da Escócia, a luta contra todas as probabilidades, um sentimento de nacionalidade e de orgulho. E que são refletidos através de todas as gerações.”
Em Londres, o jornal “The Independent” destacou hoje o evento histórico comemorado na véspera com a reportagem “Aniversário da Batalha de Bannockburn: Dez memoráveis momentos esportivos em que a Escócia derrotou a Inglaterra”, que afirmou:
“Em um caso mais de orgulho nacional do que de uma conquista esportiva real, um fã escocês estava tão encantado com o infortúnio da Inglaterra na Copa do Mundo que ele se infiltrou os torcedores uruguaios em São Paulo para posar para fotos com os fãs da oposição aos ingleses. Para tornar clara sua posição, ele se fantasiou com uma bandeira da Escócia e usava um chapéu de tartan. Acredita-se também que ele estava sentado com os italianos na multidão em Manaus, onde a Inglaterra perdeu para a Itália e, de forma semelhante ao mito do monstro de Loch Ness, ele será inevitavelmente procurado de agora em diante em cada derrota inglesa.”
Testemunhei pessoalmente esse sentimento antibritânico em uma noite de setembro de 2002, em um bar em Eddinburgh. Lá estavam meio sonolentos cerca de dez homens em algumas mesinhas, todos eles visivelmente mais velhos que eu, na época com 45 anos. Após notar meu inglês macarrônico, o homem atrás do balcão me perguntou de onde eu era, enquanto enchia a caneca de cerveja que eu acabara de pedir e pagar. Seus olhos se arregalaram de felicidade assim que respondi que sou brasileiro.
Fiquei sem entender por alguns instantes por que ele e todos os outros ali presentes, até então apáticos, me puxaram para uma mesa e se sentaram calorosamente em volta de mim cheios de alegria. Só mesmo um desligado do futebol como eu para não ter desconfiado imediatamente do que se tratava. Todos eles, ali mesmo, vestidos com a camisa da Seleção Brasileira, haviam torcido contra a Inglaterra na final da Copa do Mundo naquele ano, quando o Brasil se tornou pentacampeão.
Onda separatista
A Escócia manteve sua independência em outra guerra que veio depois da morte de Robert The Bruce. Em 1603, seu rei James 4º, sucedeu sua prima Elisabeth 1ª e se tornou também o rei James 1º dos ingleses. A Escócia continuou como estado separado, mas passou a integrar o Reino Unido em 1707, com a Inglaterra e a Irlanda.
Uma derrota tão importante quanto as de Stirling e de Bannockburn poderá acontecer em 18 de setembro, nas urnas, se os escoceses decidirem se separar do Reino Unido no referendo marcado para essa data. Como ressaltou em abril o economista e cientista social Marcos Troyjo em sua coluna “Onda separatista”, na Folha, o próprio ex-ministro da Defesa britânico e ex-chefe da Otan George Robertson, disse que a decisão escocesa será “cataclísmica” se for favorável à separação, pois acarretara até o enfraquecimento do status de potência do Reino Unido como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.