Revista científica engrossa críticas ao Facebook

Por Maurício Tuffani
Sheryl Sandberg, chefe operacional do Facebook, em pedido de desculpas por uso de dados de usuários na quarta-feira (2.jul). Imagem: Brian Snyder/Reuters
Sheryl Sandberg, chefe operacional do Facebook, em pedido de desculpas por uso de dados de usuários na quarta-feira (2.jul). Imagem: Brian Snyder/Reuters

Depois de começar a ser investigado pelo governo britânico sob acusação de ter violado leis de proteção de dados e de ter sido bombardeado por críticas na internet, desta vez o polêmico estudo psicológico realizado pelo Facebook com 689 mil usuários teve sua integridade científica posta formalmente em xeque pela própria revista que o publicou. O periódico “Proceedings of the National Academy of Sciences” (“Pnas”) veiculou na edição de ontem (quinta-feira, 3.jul) sua “Manifestação editorial de preocupação” sobre a pesquisa.

O procedimento adotado pela “Pnas” é usado por revistas científicas em casos em que há suspeita de violação de princípios éticos em uma determinada pesquisa, mas ainda sem evidências suficientes para outras ações, como a retratação pública e até mesmo a retirada do estudo. Em 2012, em parceria com a Universidade Cornell e a Universidade da Califórnia em San Francisco, o Facebook manipulou o fluxo de informações de parte de seus usuários de língua inglesa para testar as reações emocionais deles . Os dados obtidos foram usados no estudo “Evidências experimentais de contágio emocional em larga escala por meio de redes sociais”, publicado pela “Pnas” em 17 de junho.

No entanto, ironicamente, a própria nota da “Pnas” já gerou manifestações na internet de preocupação sobre a integridade de seus próprios procedimentos editoriais ao tratar desse assunto. Ontem mesmo o blog “Retraction Watch”, em seu post “Rápida mudança de humor: ‘Pnas’ emite manifestação de preocupação sobre polêmico estudo do Facebook”, afirmou:

A expressão de preocupação está um tanto difícil de ser analisada. Ela parece sugerir que os autores [do estudo] não fizeram tudo o que o se exige para publicar na ‘Pnas’, mas que mesmo assim a revista lhes permitiu publicá-lo. Agora, após uma série de críticas, é a revista que sugere que os autores deveriam ter fornecido a ela mais detalhes.”

Contradições

De fato, basta conferir o texto assinado pelo editor-chefe da “Pnas”, Inder Verma, para constatar que ele deu motivo para isso. Ele disse que o Facebook, por ser uma empresa privada, não tinha a obrigação de estar em conformidade com esses preceitos quando coletou os dados para o estudo, no qual os autores observaram e que seu trabalho era consistente com a política de uso de dados  da rede social, com a qual todos os usuários concordam antes de se associarem, o que constituiria o consentimento informado. Porém, apesar de Verma ter ressaltado que a revista adota princípios da política de saúde dos Estados Unidos que consideram boas práticas o consentimento informado dos participantes de um experimento e a permissão a eles de optar por sair, ele afirmou:

“Com base na informação fornecida pelos autores, os editores da ‘Pnas’ consideraram oportuno publicar o artigo. No entanto, é uma questão de preocupação que a coleta dos dados, o Facebook possa ter envolvido práticas que não foram totalmente coerentes com os princípios de obtenção do consentimento informado e de permitir aos participantes optar por sair.”

O imbroglio se torna ainda maior com a confirmação, por parte da Universidade Cornell, de que seu comitê de revisão internacional concluiu que o estudo, por ter sido conduzido pelo Facebook para fins internos, não se enquadra em seu programa de proteção de seres humanos em pesquisas.*

Depois de terem manipulado o fluxo de comentários e de imagens entre as centenas de milhares de cobaias humanas, os autores concluíram que as postagens desses usuários do Facebook ficavam mais negativas à medida em que recebiam mais mais postagens negativas. Ativistas da internet e de direitos de cidadania e do consumidor protestaram contra o o procedimento adotado na pesquisa, inclusive com suspeitas de usai para fins políticos.

Problema é maior

O assunto envolve pelo menos três instâncias de uso de dados. Uma delas é o Facebook, e ainda não tenho informação suficiente para saber se a filtragem e a classificação dos dados que geraram a informação usada pelos pesquisadores violaram ou não os próprios termos de uso dessa rede social. A propósito, vejo muita ingenuidade em protestos contra as políticas de uso de  dados das redes sociais, uma vez que uma boa parte da humanidade está há alguns anos abastecendo pesquisas de consumo e de comportamento voltadas para estratégias de marketing. Mesmo assim, não basta o mero pedido de desculpas, feito na quarta-feira (2.jul) pela chefe operacional dessa rede social, Sheryl Sandberg, que alegou não ter havido coleta desnecessária de dados pessoais.

Outra coisa, que vai além da política das redes sociais, é o fato de cientistas de universidades e de outras instituições públicas de pesquisa trabalharem com dados obtidos por meio de procedimentos não coerentes com suas próprias diretrizes para experimentos. Não é por menos que estão se avolumando as críticas contra a participação das duas universidades dos EUA no estudo parceria com o Facebook.

Em função disso, mesmo que o Facebook consiga se justificar com base em sua própria política de uso de dados, a situação da rede social fica complicada em relação às normas acadêmicas. O assunto poderá reaquecer a discussão, que tem grande potencial de polarização, sobre a repartição de benefícios e de recursos em parcerias entre entre empresas e instituições acadêmicas.

E uma terceira instância, que também pode implicar violação de diretrizes por parte do Facebook, é a de revistas como a “Pnas”, que têm a obrigação de assegurar o rigor analítico e a autonomia de seus comitês editoriais para avaliar os trabalhos propostos não só em seus aspectos científicos, mas também nos procedimentos com que são obtidos os dados —além de exigir dos autores declarações formais de que garantia do cumprimento desses princípios. Sem falar que não são poucas aquelas que cobram muito caro não só para publicar estudos, mas também para permitir acesso aos seus conteúdos.

* Trecho em verde substituído em 4.jul às 15h40. Na versão anterior constava erroneamente que o comitê de revisão internacional havia revisado o estudo.