A derrota do Brasil e a “dignidade da queda”

Por Maurício Tuffani
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Imagem: REUTERS/Ruben Sprich

Concordo com a comparação do futebol com o antigo teatro grego, como bem mostrou o psiquiatra e psicanalista Leopold Nosek, em seu artigo “Sófocles, Dionísio, Messi e Neymar”, publicado na Folha na semana passada (Tendências/Debates, 6.jul). E pego carona nessa boa interpretação para acrescentar que a estrondosa derrota do Brasil para a Alemanha por 7 a 1 tem muito a ver com um dos gêneros da arte grega, a tragédia.

Diferentemente do senso comum, tragédia no sentido grego antigo não significa “ocorrência ou acontecimento funesto que desperta piedade ou horror; catástrofe, desgraça, infortúnio”, como registra para essa palavra o “Houaiss”.  Para seu significado grego clássico o mesmo dicionário mostra: “na antiga Grécia, peça em verso, de forma ao mesmo tempo dramática e lírica, na qual figuram personagens ilustres ou heróicos e em que a ação, elevada, nobre e própria para suscitar o terror e a piedade, termina geralmente por um acontecimento funesto”.

Altura da queda

Houve personagens ilustres e ações elevadas na derrota do Brasil para o Uruguai, na Copa de 1950, na partida final que muitos consideram uma catástrofe muito maior que o 7 a 1. Mas ela não pode ser chamada de tragédia nesse sentido preciso. Para começar, é preciso ter um protagonista.

Nessa trágica derrota no Mineirão, o protagonista —do grego prôtos (o primeiro, o mais dianteiro), combinado com agonistés (competidor, lutador, atleta)— foi o técnico Luiz Felipe Scolari, que afirmou em entrevista no mesmo dia, após a goleada:

“Quem é o responsável? Quem é o responsável, quem é colocado como técnico, quem é responsável pelas escolhas? Sou eu, então pronto. O responsável sou eu. A escolha da parte tática é minha. o responsável fui eu.”

Em seu livro “A Tragédia Grega”,* de 1937, o filólogo austríaco Albin Lesky (1896-1981) caracteriza com rigor o sentido grego desse termo por meio da combinação de quatro requisitos. O primeiro é a “dignidade da queda”, que pressupõe uma posição socialmente elevada da personagem central (pág. 25). Nesse ponto, não falta altura no currículo de Scolari, que foi técnico campeão em duas disputas da Taça Libertadores das Américas, uma do Campeonato Brasileiro, uma Copa das Confederações e uma Copa do Mundo.

Outro aspecto indissociável da tragédia, segundo Lesky, é sua relação com o nosso mundo: “o caso deve interessar-nos, afetar-nos, comover-nos” (pág. 26). De fato, no dia 8, a humilhante goleada contra o Brasil foi levada a centenas de milhões de telas de televisores, computadores, tablets e celulares em quase todo o mundo. E ocupou as manchetes dos principais jornais em muitos países.

Consciência da ação

A terceira condição para a tragédia é a consciência do protagonista. Diferentemente do infortúnio de Neymar que recebeu o golpe dado em suas costas por Zuniga na partida com a Colombia, o acontecimento só pode ser considerado trágico se para a realização dele houver a consciência da ação por parte do ator principal. “Onde uma vítima sem vontade é conduzida surda e muda ao matadouro não há impacto trágico” (pág. 27), afirma Lesky.

Édipo, na peça de Sófocles, tinha consciência de seus atos, mas não sabia que era seu pai o homem que matou e que era sua mãe a mulher com quem transou. Da mesma forma, Scolari teve consciência de seus critérios de seleção dos jogadores e do esquema tático, mas sob seu comando eles sucumbiram assustadoramente aos alemães.

Drama insolúvel

O quarto e último requisito apontado por Lesky é a absoluta falta de solução para o conflito trágico, definida por ele como “ponto central” e “requisito primordial para a realização da autêntica tragédia” (pág. 28). Não se trata de explicar por que o Brasil perdeu, mas como foi possível a derrota ter acontecido dessa forma. Mesmo com dados estatísticos e planilhas à mão, Scolari e a comissão técnica não souberam explicar como e por que a seleção brasileira desabou sob o ataque alemão.

Certamente haverá explicações técnicas para a derrota, mas elas jamais explicarão o resultado de 7 a 1. Além disso, explicações de nada servem para a tragédia, cuja função era imitar a vida. Nesse aspecto, Nosek acertou em cheio ao destacar que a eficácia simbólica dos jogos do futebol tem muito mais a ver com os espetáculos gregos do século 5º a.C. do que com o panis et circenses das arenas romanas com seus gladiadores, ainda mais em uma Copa do Mundo em um país como o Brasil.

Como não houve mortos nem feridos, e graças à nossa capacidade de transformar infortúnios em piada, como bem mostrou hoje Hélio Schwartsman em sua coluna “Graça na derrota”, felizmente já jogaram a culpa até em Mick Jagger.


 

* Albin Lesky, “A tragédia grega”, Editora Perspectiva, São Paulo, 1976, 268 págs.