A Cantareira, a figueira, ética e estética

Por Maurício Tuffani
Resto de figueira derrubada em 6 de julho no Ipiranga, em São Paulo, para dar lugar a um empreendimento imobiliário. Imagem: Sara Santos/Divulgação
Resto de figueira derrubada em 6 de julho no Ipiranga, em São Paulo, para dar lugar a um empreendimento imobiliário. Imagem: Sara Santos/Divulgação

O esgotamento do sistema Cantareira e o corte de uma enorme figueira para dar lugar à construção de um lançamento imobiliário em São Paulo, no bairro do Ipiranga, no domingo retrasado (6.jul), são dois aspectos de uma mesma cultura predatória e irresponsável de ocupação do solo. Independentemente da incompetência do governo estadual paulista para se antecipar à estiagem que se prolonga desde o ano passado, já não tem mais cabimento continuar a abastecer a qualquer preço uma metrópole que cresce verticalmente para inflar sua densidade demográfica e reforçar os desequilíbrios sociais e regionais do país.

Restou preso ao solo o grosso toco de tronco da imponente Ficus elastica, despedaçada apesar de sua importância ambiental —mesmo não sendo nativa—, paisagística e histórica e da indignação de muitos moradores. E com aval da prefeitura paulistana, escorado em uma ridícula, estreita e ultrapassada concepção de “compensação ambiental”. Basta definir um terreno qualquer, o mais próximo possível, para plantar algumas dezenas de mudas e fantasiar a operação com frases feitas de manuais de sustentabilidade.

Se fosse possível conservá-lo, o toco permaneceria como um monumento a um artista não desconhecido, mas difuso, que é a irresponsabilidade ambiental crônica do poder público e da sociedade civil. Ironicamente, o complexo de cimento a ser erguido naquele local já tem o nome “Artisan”, que em inglês e francês significa artesão. A “arte” da etimologia desse termo tem empesteado esta e outras metrópoles brasileiras com combinações horrendas de moradias, transporte e locais de trabalho.

Estamos muito acostumados, infelizmente, a não juntar as pontas dessa irresponsabilidade ambiental, social e estética. Nesta segunda-feira (14.jul), por exemplo —e só o aponto por ser o mais recente na imprensa, pois eu também já incorri nisso—, o telejornal “Bom Dia Brasil”, da TV Globo, mostrou o corte dessa mesma figueira e, poucos minutos depois, sem estabelecer nenhuma relação com o fato, noticiou o esvaziamento das represas do sistema Alto Tietê, que também abastece a Grande São Paulo.

As outras pontas soltas não são apenas as metástases de cimento antiestéticas e disfuncionais. No caso de São Paulo, há também o transporte urbano caótico e socialmente injusto, além do desperdício de uma gigantesca quantidade de água —maior que a perdida na rede de distribuição— que é usada para impulsionar os maiores dutos de esgotos a céu aberto que são o rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí. Ou seja, a cidade não consegue mais trazer água do sul de Minas, mas continua a dissolver esgoto com grande parte das chuvas que caem em outras regiões.

“A aparência de São Paulo é horrorosa e poderia ser diferente. A beleza, sim, é valor democrático”, afirmou o advogado Luís Francisco Carvalho Filho, em sua coluna “Feiura paulistana”, na Folha, um dia antes de a imponente figueira ser derrubada no Ipiranga.

O advogado e colunista está em boa companhia. Em 1973, no mesmo ano em que ganhou o Prêmio Nobel por seus estudos sobre o comportamento animal, o biólogo e etólogo austríaco Konrad Lorenz (1903-1989), afirmou;

“A total cegueira da alma para o belo, que se propaga rapidamente em nossos dias em toda parte, é uma doença mental que deve ser levada a sério, pois acarreta uma insensibilidade pelo que é eticamente condenável.”*

Para saciar a sede dessa arte hedionda, já se pretende usar também a água do volume morto do sistema Alto Tietê, repetindo a mesma forma usada com o sistema Cantareira.


 

* Konrad Lorenz, “Os Oito Pecados Mortais do Homem Civilizado” (tradução de Henrique Beck), Editora Brasiliense, São Paulo, 1988, pág. 31.