De um lado, as ciências exatas, naturais e engenharias, inclusive as novas disciplinas tecnológicas. De outro, as letras, artes e ciências humanas. Entre os cérebros de estudantes desses dois campos existem diferenças estruturais, segundo um estudo de neurocientistas japoneses publicado na semana passada (quinta-feira, 31.jul) pela revista científica “Brain Structure & Function”. O trabalho também apontou semelhanças cerebrais entre o primeiro grupo e autistas.
Coordenada por Hikaru Takeuchi, professor de neurociência cognitiva da Universidade de Tohoku, a pesquisa tem como pano de fundo a enorme e crônica oposição no plano das ideias que existe entre esses dois campos no ambiente acadêmico no mundo todo. Enquanto para as “hard sciences” aspectos físicos e biológicos são subestimados pelas humanidades, estas apontam desconhecimento de fatores culturais pelo polo oposto.
Duas culturas
Tão marcante é esse abismo que uma conferência sobre o assunto, proferida em 1959 na Universidade de Cambridge pelo físico e escritor britânico Charles Percy Snow (1905-1980), foi anos depois eternizada em seu livro “Duas Culturas”.
No estudo de Takeuchi e seus 15 colaboradores, exames de ressonância magnética apontaram que em média estudantes das “hard sciences” têm mais matéria cinzenta no córtex pré-frontal medial, enquanto os das humanas têm maior densidade de substância branca em torno do hipocampo direito. Dos 491 graduandos examinados, 312 são do primeiro grupo (“225 machos e 87 fêmeas”) e 179 das humanidades (“105 do sexo masculino e 74 do sexo feminino”), segundo o artigo.
A interpretação dessa diferença pelos pesquisadores foi a de que o maior desenvolvimento do córtex pré-frontal está associado à ênfase na organização e na sistematização de informações pelos estudantes das disciplinas “duras”, ao passo que a maior concentração do hipocampo está relacionada à preferência por aspectos da vida de pessoas pelos graduandos das humanidades.
Nerds
Os resultados obtidos com estudantes das “hard sciences” mostraram que o maior volume de massa cinzenta na região do córtex pré-frontal observado neles pode ser associado a uma menor empatia e também à maior capacidade de visão espacial. Takeuchi e seus colegas concluíram também que essas características cerebrais têm sido apontadas também em estudos sobre indivíduos com autismo.
Os pesquisadores basearam essas interpretações em um polêmico estudo sobre o chamado “quociente de sistematização”, coordenado pelo psicólogo britânico Simon Baron-Cohen e publicado em 2003 na revista “Philosophical Transactions”, da Royal Society.
A pesquisa deu origem ao modelo explicativo baseado na relação de complementaridade entre sistematização e empatia, que de modo genérico estabelece uma diferença entre a orientação mental feminina e a masculina, sendo esta mais propensa ao autismo, o qual de fato tem sido apontado como quatro vezes mais frequente em homens.
Em seu livro “A Diferença Essencial”, também de 2003, Baron-Cohen resume a teoria que ele propõe com as seguintes palavras.
“O cérebro feminino é predominantemente programado para a empatia. O cérebro masculino é predominantemente programado para sistemas de construção e compreensão.”
Reducionismo
Na época, muitas críticas foram feitas ao trabalho do psicólogo britânico, acusando-o de ser reducionista por subestimar aspectos culturais e de enfatizar fatores biológicos. Na primeira reportagem brasileira sobre esse trabalho, feita pela jornalista Carin Petti Hommonai para a edição de junho de 2003 da revista “Galileu”, Baron-Cohen contestou essas críticas afirmando:
“Claro que a cultura é importante, mas não se pode desprezar os aspectos biológicos. Nos anos 70, a tendência era resumir todas as diferenças entre os sexos à cultura. Mas, com o avanço da tecnologia para obter imagens do cérebro, hoje se sabe que não é assim.”
Assim como o trabalho de Baron-Cohen (não confundir com seu irmão Sacha, o ator de “Borat”), o estudo japonês provavelmente será alvo por parte de críticas de estudiosos das humanidades, originadas justamente da oposição entre as “duas culturas”.
Essa dicotomia tem aparecido até no seriado humorístico “The Big Bang Theory”, no qual são personagens principais quatro nerds, três físicos e um engenheiro do Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia). Não é a toa que um deles, que tem chiliques cada vez que alguém faz menção a qualquer assunto relacionado às “humanas” seja Sheldon Cooper, representado por Jim Parsons, que é um físico teórico quase autista devido à sua incapacidade de compreender emoções e se relacionar com as pessoas.
“Inúteis humanidades”
O fundamento de toda essa oposição começou na passagem do pensamento medieval para o pensamento moderno, quando a “scientia contemplativa” da Antiguidade e da Idade Média foi gradualmente sendo substituída pela “scientia activa”. Conhecer passou a ser, cada vez mais, saber para transformar, para subjugar a natureza, tendo a matematização dos objetos como base para a ciência. O conhecimento do passado, junto com as “inúteis humanidades”, começou a ser desprestigiado, como mostra o “Discurso sobre o Método”, de René Descartes (1596-1650):
“Eis por que, tão logo a idade me permitiu sair da sujeição de meus preceptores, deixei inteiramente o estudo das letras. (…) Pois afigurava-se-me poder encontrar muito mais verdades nos raciocínios que cada qual efetua no respeitante aos negócios que lhe importam, e cujo desfecho, se julgou mal, deve puni-lo logo em seguida, do que naqueles que um homem de letras faz em seu gabinete, sobre especulações que não produzem efeito algum.”
Muitas outras interpretações sobre essa dicotomia surgiram depois na filosofia, mas isso é assunto para outra conversa. De minha parte, entendo que a relação entre as “duas culturas” é de complementaridade, assim como entre a empatia e a sistematização.
Correção (6.ago) — Howard Wolowitz, representado pelo ator Simon Helberg, um dos quatro “nerds” do seriado “The Big Bang Theory” é engenheiro aeroespacial, e eu havia escrito originalmente que todos eles são físicos. Corrigi a afirmação após ser devidamente informado pelo físico Osame Kinouchi, professor da USP de Ribeirão Preto. Peço desculpas aos leitores e agradeço ao professor. Valeu, Osame!