Devido ao meu escasso contato com a internet em viagem na semana passada à região do Arco do Desmatamento, na fronteira entre Mato Grosso e Pará, somente ontem encontrei uma reportagem que mostrava as seguintes declarações de uma mesma fonte.
“As secas prolongadas que têm afetado diversos estados e levado à iminência de racionamento na maior cidade do país, São Paulo, não se resolverão só com a volta das chuvas. É preciso reflorestar as nascentes e margens dos rios para garantir um suprimento de água confiável e perene.”
“O novo Código Florestal diminuiu as exigências de reflorestamento em áreas declivosas, o que é grave, pois são terrenos que não dão produtividade nem para a pecuária nem para a agricultura, e se prestam efetivamente para as florestas.”
Surpresa
Não, o autor dessas afirmações não é um militante ambientalista, nem um dos que criticam o agronegócio, mas justamente um respeitado representante desse setor da economia. É o engenheiro agrônomo Alberto Figueiredo, diretor da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), em entrevista ao jornalista Wladimir Platonov, da Agência Brasil, na reportagem “Agropecuarista defende mais florestas para combater falta d’água” (25.ago).
Há cerca de dois anos, o diretor da SNA já havia comentado as alterações dessa lei então recentemente aprovadas no Senado. A reportagem “Alberto Figueiredo fala sobre aprovação da MP do Código Florestal no Senado” (21.set.2012), do site da própria SNA, registrou sua seguinte resposta à pergunta por que houve a polêmica em torno da diminuição de área das reservas legais e áreas de preservação permanentes.
“Pelo simples motivo de teóricos do ambientalismo e sem qualquer compromisso com a realidade estarem tentando, ideologicamente, impor aos produtores rurais normas exageradas e sem amparo em pesquisas ou estudos mais sérios. Daí a reação natural por parte dos produtores e dos políticos que têm compromisso com o setor que garante a balança comercial brasileira no positivo, que é o do agronegócio.”
Os negritos nessa declaração foram aplicados por mim, e por três bons motivos.
Primeiramente, pela falácia da inversão do ônus da prova. Na verdade, o governo é que não dispunha de nenhum amparo científico para afirmar a segurança ambiental das alterações que estava propondo.
Em segundo lugar, não faltou disposição para encarar esse ônus. Foram publicados dezenas de estudos de pesquisadores —e não de “teóricos do ambientalismo”—, devidamente referenciados, que apontaram riscos de graves prejuízos ambientais e também sociais e econômicos com a aprovação das mudanças propostas.
E, finalmente, não houve respostas científicas para as objeções desses estudos e pesquisadores.
Em outras palavras, a declaração feita no ano retrasado pelo diretor da SNA foi insustentável em gênero, número e grau.
Os alertas
Em julho de 2010, o então presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), Marco Antonio Raupp (que posteriormente veio a ser ministro da Ciência e Tecnologia), e o da ABC (Academia Brasileira de Ciências), Jacob Palis, enviaram ofício conjunto manifestando sua preocupação com o projeto de lei, com base em estudos de pesquisadores brasileiros.
No mesmo mês, a revista norte-americana “Science”, da AAAS (Associação Americana para o Progresso da Ciência, na sigla em inglês) publicou uma carta com críticas ao projeto de lei de alteração, assinada pelos pesquisadores Jean Paul Metzger, da USP, Thomas Lewinsohn e Carlos Joly, da Unicamp, e Luciano Verdade, Luiz Antonio Martinelli e Ricardo Rodrigues, do campus da USP de Piracicaba.
Em agosto daquele ano, Joly, que também é coordenador do projeto Biota, da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), organizou uma reunião com dezenas de cientistas na sede da fundação, na capital paulista, para discutir estudos sobre o assunto e se posicionaram novamente contra a iniciativa do governo (ver reportagem da Agência Fapesp).
Em julho de 2011 a SBPC e a ABC publicaram o documento de 124 páginas “O Código Florestal e a Ciência: Contribuições para o diálogo”. Em abril de 2012, as duas entidades atualizaram essas críticas em uma segunda publicação antes da votação no Congresso.
Nada de ciência
Quando surgiram em 2010 essas críticas, eu era assessor-chefe de comunicação da Unesp (Universidade Estadual Paulista). Sob minha responsabilidade como diretor editorial estava a revista “Unesp Ciência”. Ao final de julho daquele ano, participei das discussões que resultaram na pauta cujo objetivo foi apurar as posições a favor e contra as alterações da lei. Para isso, a jornalista Giovana Girardi investigou durante dois meses dezenas de estudos e outros documentos e entrevistou cerca de 30 pesquisadores e outras fontes.
A reportagem teve a colaboração da jornalista Andreia Fanzeres, de Brasília, que entrevistou o relator do substitutivo do projeto de lei, o deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP). Ela pediu ao parlamentar que indicasse algum estudo devidamente referenciado em padrões científicos ou algum pesquisador que pudesse responder às críticas ao texto sob sua relatoria.
Rebelo não soube fazer as indicações solicitadas e protestou durante a entrevista por elas terem sido pedidas. A reportagem registrou essa manifestação do relator, que alegou trabalhar com a ajuda de um biólogo em seu gabinete.
No final das contas, após tentar a todo custo e em vão obter um contraponto às críticas, mas que fosse baseado em algum estudo referenciado em padrões de pesquisa —como exige o bom jornalismo na área de ciência—, Giovana não teve outra saída para assegurar o contraditório senão considerar o que era disponível, ou seja, opiniões de estudiosos favoráveis ao projeto de lei, mas que, apesar de renomados, não dispunham de informações devidamente escrutinizadas.
Desse modo, o resultado da pauta foi a apuração não só da ausência de embasamento com rigor científico das alterações propostas no projeto de lei, mas também a falta de respostas a objeções feitas publicamente a ele por estudos e pesquisas. O trabalho resultou na edição de outubro de 2010 com a reportagem “O Código Florestal ao arrepio da ciência”.
Os resultados
Parte das consequências da flexibilização da nova lei no texto sancionado com nove vetos pela presidente Dilma Rousseff em outubro de 2012 foi apresentada em abril deste ano em um estudo publicado na revista “Science” por Britaldo Soares Filho, Raoni Rajão, Marcia Macedo e Hermann Rodrigues, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Arnaldo Carneiro, da SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República), Michael Coe, do Centro de Pesquisas Woods Hole (em Massachusetts, EUA), e Ane Alencar, do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
Segundo a pesquisa, as mudanças na lei reduziram em 58% o passivo ambiental dos imóveis rurais no Brasil, reduzindo de 50 milhões para 21 milhões de hectares a área desmatada ilegalmente e que teria de ser restaurada conforme a legislação anterior. Dessa extensão “anistiada”, 22% correspondem a áreas de preservação permanente nas margens dos rios e 78% de reservas legais (ver reportagem da Folha).
Crise hídrica
O estudo na “Science” concluiu que essa anistia regularizadora prejudicou programas de recuperação e conservação não só na Amazônia e no Cerrado, mas também na Mata Atlântica, onde os 12% de remanescentes da floresta são vitais para fornecer água para gerar energia elétrica e abastecer mais da metade da população do país. Com isso, a redução da obrigação de recuperar ecossistemas agrava a crise de abastecimento de água já existente em região metropolitana de São Paulo e em outras grandes cidades brasileira (ver comunicado do Ipam).
Passados menos de dois anos desde a sanção do novo Código Florestal, talvez seja muito cedo para associar as novas disposições dessa lei à drástica redução dos níveis de rios e reservatórios da Região Sudeste, tendo como desdobramentos a crise no abastecimento de água da Grande São Paulo e outras cidades, a baixa produção de energia hidrelétrica e até à interrupção da navegabilidade da hidrovia Tietê-Paraná.
No entanto, não faltam aqueles que afirmam que devido às expectativas de flexibilização dessa lei, alguns de seus efeitos, como a degradação ambiental por meio da redução de matas em áreas de proteção de mananciais, teriam começado pelo menos dois anos antes de ela ser aprovada. Entre eles, há alguns pesquisadores e muitos ambientalistas.
Rumo à seca
Devido a esse fator temporal, não é certeza a relação de causalidade entre as alterações do Código Florestal e a crise hídrica atual. Mas não há dúvidas de que elas já caminham para agravar ainda mais esse cenário, ainda mais com o não cumprimento de seus mecanismos de incentivo à recomposição de matas ciliares e de nascentes.
Na mesma reportagem publicada na semana passada, em que associou o agravamento da seca às alterações do código, Alberto Figueiredo, diretor da Sociedade Nacional de Agricultura, afirmou que esse processo “coloca em risco o próprio negócio dos fazendeiros, que precisam de água abundante para irrigar suas plantações”.
Não foi por falta de aviso.