‘Science’ cutuca ‘Nature’ por má revisão de artigos com fraude

Por Maurício Tuffani
Abertura de video de divulgação da pesquisa sobre celulas-tronco, produzido antes de ser comprovada fraude no estudo. Imagem: Reprodução
Abertura de video de divulgação de pesquisa japonesa sobre celulas-tronco publicada em janeiro na revista “Nature”, produzido antes de ser comprovada fraude no estudo. Imagem: Reprodução

A conceituada revista científica britânica “Nature” enfrenta novos dissabores por ter publicado em janeiro deste ano dois estudos que tiveram de ser retratados após ser comprovada a adulteração de imagens de experimentos com células-tronco de camundongos. Antes de serem aceitos por essa publicação, os mesmos trabalhos foram rejeitados por três revisores da rival “Science”, que levantaram mais de 20 objeções, inclusive às imagens.

A revelação foi feita ontem (10.set) pelo blog “Retraction Watch”, que mostrou a correspondência entre a “Science” e a coordenadora dos dois estudos, a pesquisadora Haruko Obokata, do Centro Riken de Biologia do Desenvolvimento, em Kobe, no Japão.

Além de ter concluído que os dois artigos poderiam ser reformulados e reavaliados para publicação —o que acabou acontecendo dez meses depois—, a “Nature” os qualificou como “potencialmente inovadores” e “altamente provocativos” em mensagem para Obokata, revelada nesta quinta-feira (11.set) pelo site de notícias da “Science”, que é mantida pela AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência).

Otimismo

Até agora, o mais grave de todos os desdobramentos desse caso foi o suicídio de um dos co-autores dos estudos, Yoshiki Sasai, 52, vice-diretor do Centro Riken, que se enforcou três dias depois da nota de retratação publicada pela “Nature” em 2 de julho.

Os dois artigos de Obokata e seus colaboradores traziam a promessa implícita de dispensar as complicações éticas do uso de embriões humanos para obter as chamadas células-tronco embrionárias humanas (CTEHs), usadas  para desenvolver tratamentos de diferentes tipos de câncer e doenças como as de Parkinson, Alzheimer e outras doenças crônicas.

Já se sabia que versões preliminares desses mesmos dois artigos haviam sido rejeitadas pelas revistas “Cell” e “Science” e, posteriormente, também pela “Nature”. Agora, a situação se torna constrangedora para o periódico britânico não só com a revelação da profundidade e do detalhamento das objeções da rival —que chegaram a questionar justamente as imagens adulteradas de experimentos—, mas também pelo otimismo demonstrado com os estudos.

Retratação

Essas informações fragilizam ainda mais a posição da “Nature” expressa no editorial em que afirmou:

“Nós, da ‘Nature’, examinamos os relatórios de nossos revisores sobre os dois trabalhos e nossos próprios registros editoriais. Antes da publicação, verificamos que os resultados haviam sido replicados de forma independente nos laboratórios dos co-autores, e lamentamos não termos tomado posse de garantias dos autores em suas declarações de contribuições autorais.”

Desse modo, como eu já havia comentado neste blog no post “A desculpa esfarrapada da revista Nature” (7.jul ), a revista fez parecer que agiu com transparência ao tratar o editorial como sua própria retratação. Seus editores reconheceram que deveriam ter exigido, por escrito, de cada um dos oito autores do artigo, garantia dos resultados a ele creditados nos estudos. Mas no parágrafo seguinte deram a entender que, mesmo sem essa falha, a revista não teria evitado a publicação do artigo fraudulento.

“Concluímos que nós e os revisores não poderíamos ter detectado os problemas que minaram fatalmente os artigos. Os relatórios rigorosos dos revisores conduziram justamente à confiança que foi apresentada nos papers.”

Repetindo o que afirmei no post de julho, alguns dos autores dos dois papers poderiam ter negado ou feito restrições se o periódico tivesse exigido de cada um deles essa garantia formal antes da publicação. E citei o caso de Teruhiko Wakayama, da Universidade Yamanashi, no Japão, que posteriormente afirmou ao diário norte-americano “The Wall Street Journal”: “Eu mesmo não sei o que usei em meus experimentos”. E acrescentou: “Não há mais credibilidade quando existem tais erros cruciais”.

Enfim, tudo isso é muito ruim para a “Nature”, mas a revista tem um histórico e um prestígio muito maiores que esse deslize, que certamente será superado.

Rivalidade

Convém ressaltar novamente, como fiz no post citado, que seria um exagero absurdo exigir de qualquer publicação científica que ela seja imune a fraudes cometidas deliberadamente por cientistas por meio da manipulação de resultados em artigos. Em qualquer ramo de atividade, por maior que seja seu empenho, o combate e a prevenção de falcatruas sempre estarão desvantagem em relação à criatividade, à dissimulação e ao despistamento na exploração de brechas em mecanismos de segurança. (No caso de Obokata, os questionamentos da “Science” não deixam margem a dúvidas sobre a intenção de publicar a qualquer custo.)

Acontece que nenhuma publicação pode avaliar estudos sobre novas técnicas para obter CTHEs sem um nível de precaução redobrado, graças a um famoso precedente da própria “Science” . Em 2005, a revista da AAAS publicou dois artigos que na verdade descreviam uma falsa clonagem de CTHEs por Woo-suk Hwang, então professor da Universidade Nacional de Seul. A repercussão fez o governo da Coreia do Sul investir US$ 65 milhões no laboratório do pesquisador e reservou outros US$ 15 milhões do Ministério da Saúde e do Bem-Estar Social para a criação do Centro Mundial de Células-Tronco.

“Nature” e “Science” são revistas rivais em um mesmo modelo de comunicação científica. Diferentemente da quase totalidade das publicações acadêmicas, que são especializadas, essas duas são multidisciplinares e, além de divulgarem artigos e correspondências de cientistas, também veiculam notícias produzidas por suas próprias equipes de jornalistas especializados. Desse modo, sem querer desqualificar a notícia hoje veiculada pela “Science”, o bom senso exige considerar sempre rivalidades.