Newton da Costa e a lógica da liberdade

Por Maurício Tuffani
O matemático brasileiro Newton da Costa, em foto de 1973, em Berkeley, nos Estados Unidos. Imagem: George M. Bergman/Berkeley
O matemático brasileiro Newton da Costa, em foto de 1973, em Berkeley, nos Estados Unidos. Imagem: George M. Bergman/Berkeley

Nesta terça-feira, 16 de setembro, completa 85 anos de idade um dos matemáticos brasileiros de maior projeção internacional, o curitibano Newton Carneiro Affonso da Costa. Desenvolvidos no início dos anos 1960, seus primeiros trabalhos resultaram na elaboração de um novo capítulo na história da lógica, trazendo desdobramentos não só para a matemática, mas também para outras ciência, como a física, a economia, a computação, além da própria filosofia.

Formado em engenharia e em matemática pela UFPR (Universidade Federal do Paraná) e doutor pela mesma instituição em 1961, Newton da Costa concluiu dois anos depois a primeira formulação completa de uma lógica que admite contradições, rompendo com uma tradição aristotélica de mais de 2 mil anos. A ideia, que parecia ser maluquice ou mero desenvolvimento especulativo, enfrentou resistências e preconceitos no Brasil, mas em pouco tempo começou a ter repercussão em trabalhos de pesquisadores prestígio internacional.

Essas resistências foram superadas à medida que sua lógica “paraconsistente” passou a ter aplicações em informática, como no desenvolvimento dos chamados sistemas especialistas, permitindo que dados contraditórios possam ser computados sem prejuízo do processamento. Na medicina, por exemplo, quando é impossível verificar duas hipóteses contraditórias sobre as condições de saúde de um paciente, um sistema especialista paraconsistente pode processá-las para dar suporte a análises para diagnósticos.

Inspiração

Depois de trabalhos preliminares do russo Nikolai Vasilev (1880-1940) e dos poloneses Jan Lukasiewicz (1878-1956) e Stanislaw Jaskowski (1906-1965), o matemático brasileiro decidiu desenvolver sua pesquisa inspirado inicialmente não só pela ideia de dialética, mas também pelo esforço para ter uma lógica que pudesse ser aplicada, por exemplo, à mecânica quântica, cujos fenômenos violavam os preceitos da lógica clássica, como o princípio de não-contradição.

Newton da Costa explicou sua inspiração em novembro de 1997 em uma entrevista para a Folha, concedida a mim e ao professor Caetano Ernesto Plastino, do Departamento de Filosofia da USP:

“As lógicas não-clássicas, no meu caso a lógica paraconsistente, nasceram do seguinte problema. Georg Cantor [1845-1919, matemático alemão que desenvolveu estudos sobre teoria dos conjuntos] dizia que a essência da matemática está na sua liberdade. Pois bem, os paradoxos que surgiram no começo do século, em geral, foram eliminados com a manutenção da lógica tradicional e com a introdução de restrições nos postulados da teoria dos conjuntos. Se a matemática é absolutamente livre, como disse Cantor, vamos fazer um pouquinho diferente. Sem introduzir restrições nos postulados da teoria dos conjuntos, podemos mudar a lógica. E, com isso, podemos reconstruir a matemática clássica inteira.”

No período a partir dos anos 1960 em que lecionou na UFPR, na USP e na Unicamp, e também como professor visitante em universidades da França, Estados Unidos, Alemanha, Austrália, Rússia, Polônia e de outros países, o professor Newton escreveu mais de 200 artigos, livros e outros trabalhos, muitos em parceria com outros pesquisadores, e vários deles tiveram elevado número de citações em outros estudos.

Newton da Costa é um gênio, com direito a muitas das esquisitices do estereótipo. Mas um gênio incansável, gentil, generoso e estimulante com todos que encontra pela frente. Assistir a uma aula sua sempre foi uma experiência intensa, que teve sua melhor descrição nas palavras do economista e jornalista Gilson Schwartz em seu artigo “Na aula alucinógena”, que complementou a entrevista acima mencionada. Ao comentar uma sessão dos seminários informais dos quais o professor participava com alunos na USP, nesse caso em um final de tarde após uma passeata no centro de São Paulo, Gilson escreveu:

“(…) seu modo quase epiléptico de perseguir os elos dedutivos, sua capacidade de subitamente se interromper e acolher ou manifestar as mais terríveis dúvidas, aquilo beirava uma experiência… mística. Ou alucinógena. Não podia ser real essa experiência intelectual pura, mas inalcançável, em contraste com o mundo lá fora, a ditadura apodrecendo, as massas nas ruas, o gás lacrimogêneo e as monumentais esperanças das “liberdades democráticas”. Newton da Costa era íntimo dos maiores lógicos do mundo. No meio de uma dedução, rabiscando um sistema axiomático na lousa seminova, ele viajava para o território da filosofia e da ciência. A paixão virava vertigem, suas frases terminavam pelo menos uma oitava acima do normal. O sujeito com pinta de reacionário virava um anjo da especulação desabrida.”

Filosofia

Avesso aos temas especulativos da filosofia especulativa, Newton foi muitas vezes indevidamente rotulado como neopositivista devido à sua ênfase na matemática, na física e na lógica. Na verdade, apesar dessa característica analítica, muito próxima dos trabalhos de Bertrand Russell, Rudolf Carnap, Hans Reichenbach, o lógico brasileiro nunca perseguiu alguns dos principais objetivos desses pensadores, entre eles o de eliminar a metafísica ou combater outras expressões da filosofia, como explicou em um artigo o filósofo e historiador da ciência francês Michel Paty:

“A tolerância faz parte integrante da sua atitude intelectual, admitindo que no mundo filosófico há lugar para todos, reclamando meramente o rigor do pensamento e afirmando a necessidade de uma pluralidade de enfoques e tendências. A filosofia, para ele, é uma disciplina, uma maneira de pensar, racional, rigorosa, crítica. (…) Falei de tolerância: aliás, esta se encontra presente no fundamento mesmo do seu sistema, inclusive no momento da formalização do conhecimento, uma vez que a idéia-força de sua concepção da racionalidade científica é a da convivência de teorias ou representações, verificadas e até verdadeiras, cada uma no seu domínio de validade, mas que podem ser contraditórias entre si. Não se há de estranhar tal postura da parte do inventor da lógica paraconsistente, capaz de reconciliar uma certa forma de contradição com exigências lógicas.”

Nessa mesma linha de interpretação, John Casti, professor de filosofia do Instituto Santa Fé, nos Estados Unidos, em uma declaração para a Folha previu para o futuro muitas outras influências do trabalho do lógico brasileiro.

“Newton da Costa desenvolveu a idéia da impossibilidade até quase uma forma artística, fornecendo muitos resultados importantes para a matemática sobre os limites do possível. Seu trabalho, boa parte dele realizado em parceria com Francisco Doria, vem sendo reconhecido no mundo todo como pioneiro de uma nova abordagem dos limites do conhecimento científico. A meu ver, ele estabelecerá padrões para boa parte da filosofia da ciência e do conhecimento do século 21.”

Parceiros

Passados mais de 50 anos desde sua formulação, a lógica paraconsistente se tornou uma área de pesquisa com um grande desenvolvimento. Newton da Costa atuou diretamente na formação de dezenas de estudiosos não só desse campo, mas também de outros da lógica, da matemática e da teoria da ciência. Entre eles, alguns que foram seus principais colaboradores, como Ayda Ignez Arruda, Itala d’Ottaviano e Walter Carnielli, da Unicamp, Antonio Mário Antunes Sette, da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), Jair Abe, da USP, e  Carlos Lungarzo, da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

Casado, pai de três filhos e morando em Florianópolis, nos últimos anos o professor Newton tem trabalhado intensamente com Francisco Antonio Doria, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), produzindo diversos artigos e livros em parceria com ele.

A esta altura, o leitor pode talvez perguntar por que o trabalho desse matemático paranaense nunca foi premiado com a Medalha Fields, considerada o Nobel da matemática, que teve um único ganhador brasileiro, Artur Ávila, que a recebeu em agosto. O próprio Newton da Costa sempre soube que nem sequer teria seu nome cogitado para esse prêmio pelo simples fato de que a distinção nunca teve como foco trabalhos desenvolvidos na área de fundamentos da matemática.

A única exceção a essa regra foi o norte-americano Paul Cohen, premiado em 1966 por seus estudos em teoria dos conjuntos, mas que sempre priorizou pesquisas em análise matemática, topologia e  outras áreas da matemática. (Para os interessados, recomendo os artigos do matemático Adonai Sant’Anna sobre essa característica do prêmio e sobre os fundamentos da ciência em seu blog.)

Entusiasmo

Motivo de orgulho para o Brasil, o prêmio merecidamente recebido por Artur Avila é resultado não só do esforço e do talento desse jovem cientista, mas também do trabalho do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), uma instituição que tem se concentrado na busca pela excelência, dando pouco ou quase nenhum espaço para o corporativismo que tem minado a qualidade da produção científica brasileira.

Por sua vez, por mais que seja muito grato pelas oportunidades que teve em instituições brasileiras, Newton da Costa sempre teve de atuar vencendo obstáculos e desestímulos do dia a dia de universidades brasileiras. A presença de seu prestígio e de seu entusiasmo sempre foi um constrangimento para a burocracia acadêmica eternamente pronta para criar dificuldades. Na verdade, constantemente concentrado na superação de desafios  do conhecimento e inflexível a pressões contraproducentes, ele sempre criou ao seu redor um ambiente semelhante ao de sua lógica da liberdade, onde só valem a dedicação e a paixão pelo conhecimento.

Depois de fechar este post, telefonarei para cumprimentá-lo por seu aniversário, já sabendo que ele terá mais uma novidade para contar com entusiasmo sobre suas pesquisas. O Brasil mal o conhece, mas ele nunca desperdiçou seu tempo pensando nisso.

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PS – Prêmio Newton da Costa. Nem havia passado uma hora desde a publicação do post acima quando recebi um e-mail do lógico e filósofo franco-suíco Jean-Yves Béziau, ex-professor da Universidade de Neuchatel, na Suíca, atualmente na UFRJ, cuja formação teve grande influência do professor Newton.

Sua mensagem informou a criação do Prêmio Newton da Costa de Lógica de 2014, com inscrições abertas até 15 de dezembro, cujo objetivo é promover a lógica no Brasil, incentivar os jovens a escrever e publicar artigos, participar de eventos e divulgar trabalhos em nível internacional.

A primeira edição do prêmio prevê para o ganhador a participação no evento Unilog’2015, em Istambul, na Turquia, que reunirá lógicos de prestígio de diversos países do mundo para uma programação com cerca de 30 tutoriais e 15 workshops sobre todos os aspectos da lógica.

PS 2 – Para saber mais. Além das fontes citadas no post, há mais informações sobre o trabalho de Newton da Costa em