Eu mencionei no post de segunda-feira (15.set) a lenda urbana dos 30 milhões de crianças de rua no Brasil em meados dos anos 1980, baseando-me em um novo estudo, do antropólogo norueguês Ole Bjorn Rekdal, da Universidade de Bergen, “Prática de citação acadêmica: um carneiro naufragado?“, a ser publicado na próxima edição da revista “Portal: Libraries and the Academy”, mas já acessível pela internet.
Nesse post afirmei que eu não havia conseguido encontrar o documento que deu origem a reproduções em artigos científicos dessa estatística obviamente falsa para quem vive no Brasil. O pesquisador norueguês leu meu texto e gentilmente enviou o link de uma cópia ddo boletim “Unicef Ideas Forum”, número 18, de 1984, que por sua vez atribuiu o dado de 30 milhões de crianças de rua no país a um relatório de julho daquele ano de uma “associação de juízes de varas de infância” (pág. 1).
Além disso, o boletim afirmou também que esse número correspondia a um aumento de 90% em três anos, ou seja, de 1980 a 1983 o país teria quase dobrado em número o total de crianças de rua (ver imagem à direita).
“Tive de batalhar duramente para chegar à fonte dessa ridícula cifra”, disse Rekdal, que enviou ainda o link do “Anuário Demográfico” de outra agência das Nações Unidas, Unesco, também de 1984.
Esse outro documento indicou que em 1983 era de aproximadamente 29,5 milhões a população brasileira de 5 a 19 anos, exatamente o mesmo apontado pelo pesquisador norte-americano Tobias Hecht no estudo comentado pelo antropólogo norueguês em seu novo artigo. O dado corresponde à soma dos números de habitantes para as faixas etárias de 5 a 9 anos, 10 a 14 anos e 15 a 19 anos (pág. 234).
Em outras palavras, o número apresentado pelo Unicef para crianças de rua no Brasil em 1983 era maior que o da própria população de crianças e adolescentes do país naquele mesmo ano. Na verdade, como observou Hecht, nem mesmo dez anos depois se chegou perto disso, uma vez que os dados para 1993 apontavam a estimativa de aproximadamente 39 mil crianças de rua no Brasil .
O perigo
Como eu disse no citado post, não se trata aqui de querer atenuar a grave realidade e a dimensão do abandono de crianças no Brasil. Aliás, nesse mesmo artigo o pesquisador norueguês mostra como exageros com esse tipo de dado podem trazer graves consequências.
“Se você acha que pode não ser tão ruim retratar um grave problema social como pior do que ele realmente é, pense novamente. Algumas pessoas que trabalham diretamente com crianças de rua no Brasil afirmam que números superestimados geram desesperança e fatalismo, e podem até contribuir para motivar esquadrões da morte e sua abordagem vigilante no trato com a ‘invasão’ de milhões de crianças de rua.” (pág. 577)
Para as pessoas que tiverem interesse nessa linha de pesquisa sobre as más-condutas acadêmicas que possibilitam a reprodução de crenças sem fundamento em trabalhos científicos, recomendo outro estudo de Rekdal, “Monumentos à negligência acadêmica”, no periódico “Science, Technology & Human Values”, publicado neste ano.