Desmatamentos, manipulações e politicagens

Por Maurício Tuffani
Primeira página da Folha de 7 de meio de 1989, cuja manchete se refere a manipulação de dados de desmatamento da Amazônia pelo (Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).I Imagem: Reprodução
Primeira página da Folha de 7 de meio de 1989, cuja manchete se refere à manipulação de dados de desmatamento da Amazônia pelo (Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Imagem: Reprodução

Em sua coluna “Retrocesso no Inpe”, publicada na Folha neste domingo (2.nov), o jornalista Marcelo Leite faz uma justa crítica ao governo federal e, especialmente, ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais pelo atraso deliberado na divulgação dos dados do sistema Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real na Amazônia).

O colunista destaca as “coincidências” políticas da decisão de segurar essa divulgação, marcada pela concomitância da informação da tendência de retomada de aumento dos desmatamentos na Amazônia com a campanha eleitoral da então candidata Dilma Rousseff (PT).

Ao qualificar esse procedimento como retrocesso, o jornalista se referiu a outro episódio lamentável da história do Inpe, mas que foi muito mais grave, pois envolveu manipulação de dados. Já que tive o privilégio de ser citado nesse texto como o autor das reportagens que revelaram esse caso, passo a contá-lo a seguir em mais detalhes.

Politicagem

O pano de fundo dessa história teve início em 1987, quando começaram a ser apresentadas na Assembléia Nacional Constituinte as primeiras propostas de dispositivos para transformar a Floresta Amazônica em patrimônio nacional e estabelecer princípios mais rigorosos para a leis de conservação ambiental.

Muitos dos grandes proprietários de terras na Amazônia não perderam tempo. Antes que a nova Carta fosse concluída, eles desencadearam grandes desmatamentos e queimadas na região, que chegaram a ser vistas a olho nu pelos tripulantes da estação espacial soviética Mir. O assunto ganhou manchetes na imprensa internacional.

No final de 1988, cresceram as críticas por parte de entidades ambientalistas e de governos estrangeiros —inclusive do próprio presidente da França, François Mitterrand— às políticas de ocupação da Amazônia do governo brasileiro desde os anos 1970. Primeiro houve a divulgação de um estudo, de autoria de Dennis Mahar, consultor do Banco Mundial, que estimava em 12% o desmatamento na região. O assunto se intensificou ainda mais com o assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, no Acre.

A resposta do governo brasileiro ao Banco Mundial veio no ano seguinte. Em abril de 1989, na mesma cerimônia em que anunciou a criação do Ibama por meio da fusão de quatro órgãos de diferentes ministérios, o presidente José Sarney (PMDB) divulgou o resultado de um estudo do Inpe, segundo o qual desmatamento total da Amazônia desde o Descobrimento do Brasil teria sido de 251,4 mil quilômetros quadrados.

Com base nesse resultado do Inpe, Sarney afirmou em seu discurso:

“A imprensa internacional vem, em tom alarmista, denunciando o desmatamento grande da Floresta Amazônica. Determinei então que fosse realizada uma pesquisa exaustiva de satélites disponíveis no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O cálculo obtido aponta para um desmatamento, desde a descoberta do Brasil, de cerca de 5% da Amazônia Legal, até o ano de 1988. Ao meu período de governo corresponde uma parcela mínima.”

Fraude

Na verdade, o dado do Inpe foi obtido por meio de manipulação grosseira. Como lembrou o colunista hoje, mostrei em reportagem na Folha no mês seguinte a essa divulgação (7.mai.1989) que esse número não contabilizava cerca de 92,5 mil quilômetros quadrados de desmatamentos no Pará e no Maranhão, estado de Sarney.

Havia outros problemas naquele mapeamento. Não foi por menos que a Folha, ao publicar essa notícia, usou na capa do jornal a manchete “Governo maquiou dados sobre Amazônia” e, em página interna, a reportagem com o título “Relatório prova fraude nos dados da Amazônia”.

Imagem: Reprodução
Imagem: Reprodução

Na mesma semana, em outra reportagem (“Sarney minimizou devastação da Amazônia em seu governo”, 12.mai.1989), o pesquisador Alberto Waingort Setzer, da área de meteorologia do Inpe, confirmou que um estudo seu registrara queimadas em cerca de 80 mil quilómetros quadrados de florestas recém-derrubadas naquela região em 1987. Isso desmentiu a declaração do presidente de que “uma parcela ínfima” de todo o desmatamento apontado pelo Inpe correspondia ao período de sua gestão (1985-1990).

Em dezembro daquele ano, o Inpe alterou o dado do desmatamento até 1988 para cerca de 358,7 mil quilômetros quadrados, um número 42,6% maior que os 251,4 mil quilômetros quadrados divulgados por Sarney. Somente em 1992, com a divulgação de relatório para o período 1990-1991, foi feita a correção final para 377,6 mil quilômetros quadrados. Ou seja, reconhecendo um erro de 50,2% sobre o índice anunciado três anos antes pelo presidente.

A credibilidade do Inpe sobreviveu a esse episódio. E, pegando carona mais uma vez no que disse com razão o colunista, o instituto merece o respeito dos brasileiros. Seu corpo de pesquisadores tem sido reconhecido internacionalmente cada vez mais por sua competência. Mas o órgão poderá manchar sua reputação novamente se continuar a protelar a divulgação de informações técnico-científicas de interesse de toda a sociedade brasileira.