Este post é uma espécie de “reportagem inconclusiva”, ou melhor, um relato de uma apuração jornalística que terminou com a falta de conclusões satisfatórias sobre um assunto que se arrasta pelo menos desde o início deste século: as diferenças de dados entre o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica, da Fundação SOS Mata Atlântica, e do Inventário Florestal do Estado de São Paulo, da SMA (Secretaria do Meio Ambiente do Estado).
O objetivo deste post é registrar e divulgar o capítulo mais recente dessa “história sem fim”, relacionado à área do sistema Cantareira, e enfatizar a pergunta do título acima, especialmente para a SMA, que precisa ser mais transparente com seus dados sobre o assunto.
Para quem não tiver tempo, paciência ou interesse de ler até o fim, o texto antes do tópico 1. Mudança de dados está mais que de bom tamanho como resumo.
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A mata Atlântica na bacia hidrográfica do sistema Cantareira não aumentou de 41,8 mil hectares para 64,6 mil hectares de 2005 a 2010, como afirmou a SMA (Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo) no início de outubro para contestar a Fundação SOS Mata Atlântica na reportagem deste blogueiro “Desmatamento há 30 anos prejudica sistema Cantareira, diz ONG”, publicada na Folha (9.out).
O órgão do governo estadual paulista não conseguiu comprovar esse dado de variação de cobertura vegetal, que corresponde numericamente a 54,5%. O máximo que conseguiu mostrar foi que existem áreas em estágio inicial e intermediário de recuperação de matas nativas nessa região, que é abrangida pelo municípios de Bragança Paulista, Caieiras, Franco da Rocha, Joanópolis, Mairiporã, Nazaré Paulista, Piracaia e Vargem.
No início de outubro, a ONG divulgou que o nível de 79,5% do desmatamento atingido há 30 anos nessa bacia continua a prejudicar a capacidade de produção de água dos reservatórios que hoje abastecem cerca de 8,5 milhões de habitantes de São Paulo e outras cidades.
Ao ser questionada para aquela reportagem da Folha sobre as medidas que teria tomado para recuperar áreas desmatadas nesses oito municípios, a secretaria optou por apontar dados de sua fiscalização na região e a contestar as afirmações da SOS Mata Atlântica. Para isso, apontou o alegado aumento da cobertura vegetal e citou como fonte o Inventário Florestal do Estado, elaborado pelo IF (Instituto Florestal).
A fundação ambientalista também realiza desde 1986, em parceria com o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) seu Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica, que abrange 17 Estados, mas com outra metodologia. A entidade tem reconhecido São Paulo como um dos Estados que mais preserva esse bioma no país. No entanto, a ONG não tem detectado aumentos da cobertura vegetal original paulista, mas reduções, ainda que muito pequenas em comparação com sua área total e com desmatamentos de outros Estados.
As divergências de números entre os dois programas de mapeamento apareceram principalmente na imprensa com as divulgações do Inventário em 2005 e 2010. Mas a questão nunca foi efetivamente conduzida em busca de uma solução.
No mesmo dia em que saiu a citada matéria, este blog publicou o post “Fundação e governo de SP divergem sobre florestas no Cantareira”. Entre outras informações, a postagem apresentou em detalhes os dados afirmados pela SOS Mata Atlântica e relatou que essa ONG e a secretaria estadual estariam agendando uma reunião para compreender a divergência entre suas estimativas da área desmatada naqueles oito municípios.
A apuração dessa divergência poderia mostrar, por um lado, que têm sido procedentes as avaliações da SOS Mata Atlântica sobre as pequenas reduções de remanescentes florestais de São Paulo. Por outro lado, existia a possibilidade de que, devido a uma diferença metodológica entre os dois mapeamentos, a entidade não teria detectado um crescimento expressivo da cobertura vegetal nativa não só no entorno dos reservatórios do sistema Cantareira, mas em todo o Estado.
A SMA não conseguiu comprovar os dados de aumento da cobertura vegetal original do Estado que afirmou, nem que teria havido crescimento expressivo nos últimos anos, apesar de estar trabalhando com imagens de precisão maior que a SOS Mata Atlântica.
E permanece a dúvida: nos últimos anos, a mata Atlântica no sistema Cantareira e em todo o Estado de São Paulo cresceu, diminuiu ou teve uma variação tão pequena que seria mais uma tendência de estabilização?
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1. Mudança de dados
Ao ser questionada novamente para explicar o aumento que alegara, a SMA respondeu por meio do responsável pela CFA (Coordenadoria de Fiscalização Ambiental), o agrônomo Ricardo Viegas. Ele apresentou três tabelas que discriminavam dados de áreas de vegetação nativa dos mesmos oito municípios considerados anteriormente, mas referentes a outro período.
A primeira dessas tabelas totalizava cerca de 41,2 mil hectares para 2010, a segunda somava 44,7 mil hectares para 2014, e a terceira e última quantificava as diferenças entre esses números, com a respectiva totalização de “acréscimo” no quadriênio, representada também por outro percentual, que dessa vez foi muito menor: 8,6%.
2. Incongruências
A apresentação desses novos indicadores de áreas de florestas para um período mais recente na bacia do Cantareira gerou, de imediato, três consequências desfavoráveis para a secretaria estadual, como mostra resumidamente o quadro a seguir.
Primeiramente, o segundo indicador para 2010 —41,2 mil hectares— não é apenas diferente, mas expressivamente menor que os 64,6 mil hectares atribuídos anteriormente, na resposta à reportagem de outubro, para o mesmo ano e a mesma área geográfica. Isso desacreditou não só sua alegação de acréscimo expressivo da cobertura vegetal, mas também qualquer possibilidade de aumento (item 4 do quadro acima).
Questionado sobre essa disparidade, Viegas deu resposta evasiva, afirmando que de modo geral houve aumento na área total de florestas do Estado antes de 2010.
Em segundo lugar, o novo dado de 8,6% aumento, desta vez de 2010 para 2014, pouco ameniza o quadro de prejuízo dos desmatamentos para a capacidade de produção de água desse sistema, que foi destacado pela SOS Mata Atlântica com base nos seguintes dados de seu Atlas (item 5 do quadro acima). Mostradas na tabela a seguir, as áreas de cobertura vegetal nativa dos oito municípios paulistas totalizam 29,7 mil hectares.
3. Escalas diferentes
Em terceiro lugar, e finalmente, o segundo dado de aumento alegado pela SMA também não tem sustentação. O fato de a área mapeada em 2014 ser maior que aquela medida no levantamento anterior não significa “acréscimo” da cobertura vegetal nativa, como havia afirmado Viegas e constava no conjunto de três tabelas que ele apresentou em entrevista.
Não é possível concluir que houve aumento de 2010 a 2014, uma vez que a área de mata Atlântica medida neste ano nos oito municípios do sistema Cantareira é maior que a anterior porque agora o Inventário Florestal passou a conseguir mapear trechos de florestas que antes não conseguia detectar. É como substituir lentes mais adequadas nos óculos e enxergar detalhes que antes não eram percebidos.
Isso não foi esclarecido naquela entrevista, mas em uma segunda. Somente após sucessivos pedidos de explicações sobre a metodologia do mapeamento feito neste ano, este blog teve acesso ao físico Marco Aurélio Nalon, mestre em ciências florestais pela USP de Piracicaba e pesquisador do Instituto Florestal, onde é também coordenador do Inventário Florestal. Ele explicou que desta vez foram usadas fotos aéreas em escala de 1:10.000, que permitem identificar objetos de um metro de comprimento, ao passo que em 2010 foram usadas imagens do satélite japonês Alos, de menor resolução (1:25.000), que detectam extensões de pelo menos 10 metros.
Nalon lembrou que já havia esclarecido à imprensa, na divulgação do Inventário Florestal de 2010, que os dados de cobertura vegetal do Estado anunciados naquele ano também não podem ser comparados com os do mapeamento de 2005, que se baseou em imagens de outro satélite, o norte-americano Landsat-7 (1:50.000), que detecta áreas com tamanho mínimo de 3 hectares.
4. Complicações e erros
Não há como o Inventário Florestal ou a SMA obter imagens de 2005 nem deste ano do satélite Alos para compará-las com as de 2010, pois o engenho japonês foi lançado ao espaço em janeiro de 2006 e deixou de funcionar em abril de 2011.
Para complicar ainda mais, as referências feitas pela SMA aos anos de 2005 e 2010 foram equivocadas na resposta da pasta à Folha em outubro, pois o Inventário Florestal não se baseou nos cenários florestais de nenhum desses dois anos. Na verdade, 2005 foi o ano da publicação em livro do mapeamento de todo o Estado referente a 2001. E em 2010 houve a divulgação oficial do inventário com base na situação da cobertura vegetal no mesmo território no biênio 2008-2009.
Esse mesmo erro de referência voltou a se repetir nas tabelas apresentadas por Viegas na sua entrevista, que indicaram indevidamente como “acréscimo” a partir de 2010 aquilo que teria acontecido a partir de 2008-2009.
5. Quatro exemplos
Apesar da impossibilidade de comprovar aumento da cobertura vegetal por meio da comparação de mapeamentos com metodologias diferentes, Viegas insistiu em afirmar que é possível ter certeza de aumentos expressivos com base nos dados do Inventário Florestal combinados com informações da fiscalização.
Para tentar provar isso, a SMA convidou este blogueiro para um sobrevôo de helicóptero em 29 de outubro a quatro locais no município de Piracaia previamente identificados pela fiscalização como áreas de cobertura vegetal nativa em estágio de regeneração inferior a quatro anos. A atividade de campo frustrou essa expectativa.
Apesar de terem sido selecionadas como áreas de recuperação recente, ao serem avistadas nesse sobrevôo duas dessas localidades foram prontamente descartadas como exemplos válidos por Nalon e pelo biólogo Sergio Luis Marçon, mestre em biologia comparada pela USP de Ribeirão Preto e diretor do Departamento de Planejamento e Monitoramento, subordinado a Viegas.
Uma dessas duas áreas que não corresponderam à expectativa de servirem de exemplos de recuperação recente foi a primeira a ser avistada, correspondente à imagem a seguir, gentilmente cedida por Marçon.
Ambos os técnicos concordaram, porém, que a regeneração é bem recente nas outras duas áreas selecionadas e avistadas nesse sobrevôo. Uma delas, às margens do reservatório do rio Cachoeira, é mostrada em outra foto tirada por Marçon (a seguir).
Ao ser informada pela reportagem dos novos dados do Inventário Florestal apresentados pela SMA e dessa visita às quatro áreas, Marcia Hirota, diretora-executiva da ONG, afirmou:
“A regeneração natural em períodos de menos de cinco anos é sempre muito complicada e difícil de identificar, pois a mudança na imagem ainda é sutil e sua identificação ainda é subjetiva. De qualquer maneira, é louvável a iniciativa do Instituto Florestal em realizar esse mapeamento e esperamos que eles mantenham a base permanentemente atualizada e os dados sejam disponibilizados. O objetivo final é a proteção das florestas naturais e só teremos isso com o engajamento e participação da sociedade.”
6. Desmatamentos
Em 1995 o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica começou a ser realizado com base na analise de imagens Landsat-5 e Landsat-7, com resolução 1:50.000, mantendo a preocupação metodológica de assegurar a medição da variação da cobertura vegetal entre um mapeamento e o seguinte. Com base nisso, a ONG tem desenvolvido um importante trabalho de âmbito nacional, inclusive de divulgação, sobre a atuação do Poder Púbico na proteção desse bioma.
A entidade tem apontado São Paulo como um dos Estados que mais têm preservado a mata Atlântica nas últimas décadas. No entanto, a ONG não tem registrado aumentos, mas reduções, ainda que muito pequenas, de cobertura vegetal: 190 hectares de 2011 a 2012 e 98 hectares de 2012 a 2013, como mostra o quadro a seguir.
Apesar de seus dados apontarem diminuição, e não aumento, de remanescentes florestais, a ONG não rejeitou a possibilidade de crescimento recente nos oito municípios da bacia do Cantareira. No entanto, Marcia Hirota destacou:
“A detecção de aumento ou supressão de vegetação nativa precisa ser feita com base em imagens e escalas semelhantes. Acho importante reforçar que cada área identificada como ‘regeneração’ ou ‘desmatamento’ no novo mapeamento deve ser validada com a comparação entre imagens para confirmação de que houve mudança real na área e não no critério de mapeamento.”
7. Preservação e compensação
Para preservar a mata Atlântica na região do Cantareira foi importante a criação de três unidades de conservação em 2010. Uma delas é o parque estadual de Itaberaba, com 15,1 mil hectares nos municípios de Arujá, Guarulhos, Nazaré Paulista, Santa Isabel e Mairiporã. Outro parque estadual, o de Itapetinga, tem 10,2 mil hectares distribuídos por Atibaia, Bom Jesus dos Perdões, Mairiporã e Nazaré Paulista.
Essas duas unidades formam uma área contínua de 28,6 mil hectares ao serem conectadas pelos 3,3 mil hectares da terceira, que é o monumento natural estadual da Pedra Grande, que abrange os municípios de Atibaia, Mairiporã, Bom Jesus dos Perdões e Nazaré Paulista.
Essas ações são importantes para a manutenção dos remanescentes de mata Atlântica, mas não necessariamente para a recuperação de áreas degradadas. Para o período de 2010 a 2014, a Secretaria do Meio Ambiente informou diversas outras ações de preservação e também de recuperação, mas na área da bacia hidrográfica dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, mas sem discriminar o que corresponde ao sistema Cantareira.
8. Dados ‘secretos’
Desde seu primeiro levantamento da cobertura vegetal de todo o Estado em 1991, o Inventário Florestal não tem publicado sua metodologia nem outras informações técnicas em periódicos acessíveis à comunidade científica internacional. Diferentemente da SOS Mata Atlântica, que tem referenciado seus mapeamentos em parceria com o Inpe em revistas como a “Conservation Biology”.
Segundo Nalon, sua equipe, que inclui apenas dois outros pesquisadores e dois técnicos de apoio, não cuida apenas do Inventário Florestal, mas também de outros monitoramentos de matas nativas, como o do Rodoanel de São Paulo, e de outros trabalhos. Segundo ele, esse volume, somado à limitação de recursos, dificulta a elaboração de artigos científicos.
Questionado por que as imagens e outros dados de 2010 do Inventário Florestal de cada município ainda não estavam disponíveis na internet, Nalon respondeu que já havia solicitado ao IF providências para isso e que voltaria a fazê-lo.
No dia 28 de outubro, após ser questionado sobre essa falta de divulgação, o instituto publicou na internet os mapas de 2010 dos oito municípios do sistema Cantareira. A SMA afirmou que em breve estarão acessíveis dados e imagens de todo o Estado.
(In)Conclusão
Como já foi dito acima, a SMA não conseguiu comprovar os percentuais de aumento da cobertura vegetal original do Estado que afirmou, nem que teria havido crescimento expressivo nos últimos anos, apesar de estar trabalhando com imagens de precisão maior que a SOS Mata Atlântica.
A ONG, por sua vez, não replicou a contestação da secretaria estadual, mas pediu ao órgão o agendamento de uma reunião para ter acesso aos dados do Inventário Florestal e dialogar sobre as divergências entre seus indicadores. Até agora, segundo a entidade, a reunião não aconteceu.
Depois de duas entrevistas presenciais na sede da secretaria, várias outras por telefone, dezenas de mensagens trocadas com a Secretaria do Meio Ambiente, a SOS Mata Atlântica e outras fontes —com perguntas, respostas e envio de documentos— e até um sobrevôo de helicóptero com a assistência de dois especialistas da SMA, o citado aumento foi desmentido e outros dados e argumentos apresentados não foram comprovados.
E ainda permanece a dúvida: nos últimos anos, a mata Atlântica no sistema Cantareira e em todo o Estado de São Paulo cresceu, diminuiu ou teve uma variação tão pequena que seria mais uma tendência de estabilização?
Em que pesem as diferenças metodológicas e outros aspectos que inviabilizam a resposta a essa pergunta, ela não se refere a um aspecto subjetivo, mas a uma realidade material, tangível e mensurável. E é inaceitável essa indagação persistir justamente no Estado onde se concentra cerca da metade da produção científica de todo o país.
O jornalista Maurício Tuffani participou do sobrevôo de helicóptero na serra da Cantareira a convite da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.