As iniciativas para promover o ensino do criacionismo em aulas de ciência na educação básica do Brasil —entre elas o projeto de lei 8.099/2014 , apresentado ao Congresso Nacional no dia 13 pelo deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP)— tiveram um duro revés neste domingo (16.nov). E o golpe veio justamente por parte de adeptos brasileiros da chamada teoria do Design Inteligente (DI), que também contesta a teoria da evolução por meio da seleção natural, formulada por Charles Darwin.
Reunidos desde quinta-feira (14.nov) em Campinas (SP), os participantes do 1º Congresso Brasileiro do Design Inteligente, aprovaram em assembleia o primeiro manifesto da recém-criada TDI Brasil (Sociedade Brasileira do Design Inteligente), que se posicionou contra o ensino em aulas de ciência da interpretação bíblica da origem do universo e dos seres vivos.
Para a entidade, o ensino e o debate do criacionismo religioso e filosófico cabem apenas às disciplinas de filosofia e teologia, de acordo com o texto aprovado no evento, obtido com exclusividade por este blog (clique aqui para ler), que deverá ser revisado* e publicado no site da TDI nos próximos dias.
Diferentemente do criacionismo que se baseia na interpretação bíblica literal de que “a vida tem sua origem em Deus, como criador supremo de todo universo e de todas as coisas que o compõe”, como consta no projeto de Feliciano, os defensores do DI entendem que os seres vivos têm uma complexidade grande demais, a ponto de ser matematicamente improvável que eles tenham surgido sem um planejamento (design) prévio. Essa formulação não é aceita pela ciência.
Preocupações
O manifesto foi aprovado por unanimidade por cerca de 350 integrantes da nova entidade, segundo o químico Marcos Eberlin, professor da Unicamp, membro da Academia Brasileira de Ciências e presidente-executivo da TDI Brasil.
O projeto de lei do deputado Feliciano não fez parte da pauta do congresso, mas foi discutido em paralelo no evento. Segundo um dos participantes que não quis ser identificado, o texto repleto de erros de informação da proposta do deputado gerou preocupações, principalmente pela coincidência de ter sido apresentado na véspera da abertura do congresso. Exatamente como consta no post de ontem deste blog (“Projeto criacionista de Feliciano é um monumento à ignorância”).
Apesar de não constar no texto do projeto de lei nenhuma disposição sobre o ensino do criacionismo em aulas de ciências, é isso o que o texto propõe na prática, como mostra o trecho a seguir.
“didaticamente o ensino sobre criacionismo deverá levar ao estudante, analogamente ao evolucionismo, alternância de conhecimento de fonte diversa a fim de que o estudante avalie cognitivamente ambas as disciplinas.”
Exceto pelo acréscimo do trecho correspondente ao primeiro parágrafo de sua “justificativa”, o texto apresentado por Feliciano é idêntico, inclusive nos erros gramaticais, ao do projeto de lei 594/2007, apresentado pelo deputado estadual Artagão Jr. (PMDB) à Assembleia Legislativa do Estado Paraná (Alep) em 2007.
‘Sem racha’
De acordo com o manifesto, o DI poderia e deveria ser ensinado em aulas de ciência, mas não por enquanto.
“Nossa posição se baseia na posição atual da Academia, que ainda não acata a TDI e o seu ensino, posição essa que nós da TDI BRASIL, como acadêmicos, acatamos.
“Outro fundamento de nossa posição contrária ao ensino da TDI nas escolas é a não existência ainda de professores bem capacitados para corretamente ensinar os postulados da TDI.”
Conversei por telefone com Eberlin. Segundo ele, a posição assumida no manifesto não resultou em uma cisão entre os adeptos do DI e os do criacionismo bíblico no Brasil, que também teve representantes do evento. Ele afirmou que a questão foi amplamente debatida e a decisão foi tomada por consenso.
Este post será atualizado nos próximos dias com opiniões de cientistas sobre a posição assumida pela TDI e sobre o projeto de lei dos deputados Feliciano e Artagão Jr.
* Alteração de 17.nov (18h50). A direção da TDI Brasil informou ao blog no dia anterior que o texto seria revisado antes de ser divulgado oficialmente pela entidade.
Opiniões sobre o manifesto da TDI Brasil.
Fabiano Menegidio – biólogo, mestrando pela Universidade de Mogi das Cruzes e editor do site “Evolution Academy” (16.nov, 22h32).
Tenho minhas ressalvas sobre a “posição” adotada e ela é condizente com a mesma estratégia aplicada pelo Discovery Institute nos EUA para tentar separar a visão teológica do DI. Eles não podem promover um debate nesse momento pois a “Sociedade” ainda não tem forças e contatos políticos.
Citam “evidências científicas” para o criacionismo… Vale lembrar que o Eberlin faz palestras literalistas, como a veracidade do Diluvio Global e nega o tempo geológico. E boa parte dos participantes do evento já assistiram sua palestra. Ele não poderia dar um tiro no pé.
No manifesto eles citam o “Criacionismo teológico”, o “Criacionismo filosófico”, mas excluem o que tratam como um “Criacionismo Cientifico”. Foi uma jogadinha certa para tentar atingir as massas e separar essas vertentes para os desavisados.
É exatamente o que vemos nos EUA desde o surgimento do DI. Estamos atrasados, mas seguindo a mesma história.
Helena Nader – professora de bioquímica da Unifesp e presidente da SBPC (19.nov, 13h07)
A laicidade do Estado brasileiro é garantida pela Constituição. O criacionismo não é ciência, é religião, e por isso não é válido o argumento de que deve ser mostrado como uma teoria alternativa à evolução. Não tem cabimento misturar fé e ciência como no argumento de que que as crianças ficam “confusas” porque aprendem na escola algo diverso do que afirmam suas religiões, como consta no projeto de lei apresentado na semana passada. A SBPC se posicionará de forma contundente contra esse projeto de lei.
Eduardo Ottoni – etólogo, professor de psicologia evolucionista e do comportamento e da cognição animal da USP (20.nov, 21h10)
Em termos metodológicos, o DI é tão anticientífico quanto o criacionismo, já que busca confirmações da crença e não o falseamento das hipóteses. O DI só não baseia argumentos no dogma, embora suas motivações venham dele. Constato que no DI há muitos químicos crentes que se aproveitam de trabalhar numa ciência intermediária entre a física e a biologia. Eles estão “superrepresentados” no DI, o que, na minha conjectura, se deve ao fato de que é bem menos inviável ser um químico criacionista que um biólogo criacionista, o que é impossível em qualquer ambiente intelectual respeitável.