A caixa-preta do design inteligente

Por Maurício Tuffani

O movimento negacionista da teoria da evolução de Charles Darwin (1809-1892) voltou a ser notícia recentemente ao realizar em Campinas (SP) o 1º Congresso Brasileiro do Design Inteligente. Há poucos dias, organizadores desse evento contestaram um manifesto em defesa da evolução de professores e pós-graduandos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Essa tréplica foi noticiada na quinta-feira (18.dez) por meu colega Reinaldo Lopes em seu blog “Darwin e Deus”.

Diferentemente do criacionismo tradicional, a teoria do design inteligente (TDI) não é baseada na interpretação literal bíblica sobre a criação do mundo e dos seres vivos. Não há entre os cientistas adeptos dessa teoria partidários da ideia de que o universo existe há menos de 6 mil anos.

Os adeptos da TDI alegam que a evolução por meio da seleção natural é uma teoria em crise porque que não consegue explicar diversas etapas da transformação dos seres vivos a partir de primitivos compostos orgânicos, há centenas de milhões de anos. A única explicação possível para essas lacunas, segundo a TDI, é a de que etapas cruciais dessas transformações resultaram da interferência de uma instância inteligente.

Na TDI não há sugestões de modelos explicativos para superar o alcance da teoria da evolução (TE). As inovações propostas pelo design inteligente são conceitos destinados a apontar limites da seleção natural. Exceto por sua postulação sobrenatural, a TDI não tem referenciais próprios, mas somente da teoria que pretende substituir. Sua agenda é reativa, pautada pela negatividade e sem um foco concreto na ampliação do conhecimento.

O design

Ao questionar o modelo darwinista, os adeptos da TDI afirmam que os avanços da bioquímica a partir dos anos 1950 revelaram que a origem da vida envolveu transformações complexas e impossíveis de terem sido realizadas sem a interferência externa de uma atividade inteligente. Eles chamam essa intervenção de planejamento ou design inteligente.

Em seu livro de 1996, o bioquímico Michael Behe, da Universidade Lehigh, nos estados Unidos, um dos principais defensores dessa teoria, afirmou:

“A necessidade de controle é óbvia no caso das máquinas que usamos na vida diária. Uma serra que não pudesse ser desligada seria um grande perigo, e um carro sem freios tampouco teria utilidade. Sistemas bioquímicos também são máquinas que usamos na vida diária (quer pensemos nelas ou não) e também têm de ser controladas.”
(Michael Behe, “A Caixa-Preta de Darwin: O desafio da bioquímica à teoria da evolução”, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997, pág. 161)

Em sua resposta ao manifesto da UFRGS, os adeptos brasileiros da TDI, liderados pelo químico Marcos Eberlin, da Unicamp, destacaram, mas sem justificar devidamente com referências, que as chances para a origem da vida na Terra há centenas de milhões de anos teriam sido de uma para um número representado pelo algarismo “1” seguido por 10.123 zeros (1/1010123).

Em 29 de abril de 2010, em sua palestra de encerramento do 3º Seminário Internacional Darwinismo Hoje, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, Eberlin mostrou uma probabilidade maior, que seria de um quociente com 195 zeros (1/10195), mas alegando que ela não seria alcançada nem mesmo por todos os recursos probabilísticos do universo.

Refutações

Ao se contrapor à TDI e até mesmo ao criacionismo bíblico, evolucionistas muitas vezes incorreram em graves erros do ponto de vista epistemológico e até mesmo do lógico. A principal bobeada tem sido a afirmação de que a seleção natural é “cientificamente comprovada”.

Na epistemologia, até mesmo aqueles que não simpatizam com o trabalho do filósofo da ciência austríaco Karl Popper (1902-1994) reconhecem a demolição por esse pensador da crença cientificista de que uma teoria pode ser provada. Seu clássico “A Lógica da Pesquisa Científica”, de 1934, deixou definitivamente claro que uma teoria pode ser corroborada por observações e experimentações —ou seja, sobreviver à confrontação empírica— ou refutada por elas, mas nunca pode ser comprovada.

Popper, no entanto, não era um refutacionista ingênuo. Assim como outros estudiosos da epistemologia desde essa sua obra, ele sabia que do ponto de vista prático é razoável admitir explicações casuístas (“ad-hoc”) para anomalias, de modo a preservar as teorias, principalmente na falta de alternativas para substituição.

Essa opção pela preservação da teoria em face de anomalias é ressaltada por muitos adeptos da TDI ao se insurgirem contra o darwinismo, como mostra a citada resposta de seus adeptos brasileiros ao manifesto da UFRGS:

“(…) poderíamos mencionar aqui quase uma centena de artigos científicos, de renomados e abalizados cientistas evolucionistas, questionando a robustez de alguns aspectos fundamentais da TE no contexto de justificação teórica e que apontam para outra direção.”

Paradigmas

É com base nesse ponto que alguns defensores da TDI têm invocado o trabalho do físico teórico e historiador da ciência norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996). Em seu livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”, de 1962, esse autor mostrou porque nem sempre a confrontação empírica é decisiva na preservação ou substituição de teorias.

Kuhn estabeleceu o conceito de “paradigmas”, que são compromissos conceituais, metodológicos e instrumentais compartilhados pelos membros de uma especialidade científica durante um determinado período. Um paradigma, diz Kuhn, dirige a pesquisa científica para a articulação dos fenômenos já definidos por ele e reforçados pela educação profissional. Segundo o autor:

“A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômenos; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos”.
(Thomas Kuhn, “A Estrutura das Revoluções Científicas”, Editora Perspectiva, São Paulo, 1982, pág. 45)

Afirmações como essa têm sido aproveitadas por defensores da TDI, para os quais revisões críticas dentro do próprio darwinismo deveriam levar a refutações à TE. Esta, no entanto, segundo os antievolucionistas, conseguiria prevalecer por ser amplamente majoritária nas universidades e instituições de pesquisa. Como afirmou Behe em seu livro já citado,

“Muitas pessoas, inclusive importantes e renomados cientistas, simplesmente não querem que um ser sobrenatural afete a natureza, por mais curta ou criativa que essa intervenção tenha sido.”
(Behe, “A Caixa-Preta de Darwin”, pág. 245).

Zona de conforto

Lamentavelmente, grande parte dos pesquisadores evolucionistas jamais se dispôs a responder às críticas de adeptos da TDI. Certos de conseguirem manter as publicações acadêmicas praticamente imunes à apresentação e à aceitação de artigos contrários à TE, muitos cientistas têm optado por ignorar essas contestações.

Na imprensa, por sua vez, muitos jornalistas e editores de ciência não têm dado espaço para abordagens sobre o assunto, seja pela escassez de artigos devidamente avalizados sobre a TDI, seja por considerarem essa teoria como um criacionismo disfarçado de ciência.

No caso dos argumentos epistemológicos, essa indisposição para o debate foi ainda maior, menos movida pela indiferença provida pela zona de conforto do que pelo fato de que lógica e filosofia da ciência geralmente não são disciplinas prioritárias na formação de cientistas.

Assombrações

De um modo geral, as manifestações acadêmicas sobre a TDI têm ocorrido sob a forma de documentos coletivos de entidades científicas ou de grupos de pesquisadores, como foi o caso do posicionamento na UFGRS. Em que pese a pertinência de argumentos apresentados, esse procedimento tem sido pouco eficiente para promover um debate sobre o assunto. Para a maioria tem servido muito mais como uma forma de recusa de debate. Felizmente também têm surgido blogs ou redes sociais de evolucionistas com boas contribuições, mas com alcance restrito.

Com essas e outras, o fantasma criacionista empurrado pela academia e pela imprensa para dentro do armário tem conseguido muitas vezes explorar o vazio deixado na opinião pública por cientistas e jornalistas.

Contra essas assombrações, os poucos antídotos disponíveis de maior alcance mais recentes têm sido alguns livros de divulgadores da ciência como “Deus, um Delírio” (2006), do etólogo britânico Richard Dawkins, e “Quebrando o Encanto” (2006), do cientista cognitivo e filósofo da ciência norte-americano Daniel Dennett, e a série de televisão “Cosmos: Uma odisseia no tempo”, do astrônomo norte-americano Neil deGrasse Tyson e remake de “Cosmos: Uma viagem pessoal”, de 1980, idealizada e apresentada pelo astrônomo Carl Sagan (1934-1996).

Falácias

Na verdade, o apelo aos clássicos da epistemologia em favor da TDI só é possível por meio de falácias, a começar pela incompatibilidade com a proposta do planejador inteligente como axioma não só para a biologia, mas também para a paleontologia, a bioquímica e outras áreas associadas à evolução. Como exemplo dessa formulação, recorrerei novamente a Michael Behe, que é um dos defensores dessa teoria menos enfáticos no proselitismo religioso.

“Há um elefante em uma sala cheia de cientistas que tentam explicar o aparecimento da vida. O elefante é rotulado de ‘planejamento inteligente’. Para uma pessoa que não se sente obrigada a restringir sua busca a causas não-inteligentes, a conclusão óbvia é que muitos sistemas bioquímicos foram planejados. Eles foram desenhados não por leis da natureza, pelo acaso ou pela necessidade; na verdade, foram planejados. O planejador sabia que aparência os sistemas teriam quando completos, e tomou medidas para torna-los realidade em seguida. A vida na Terra, em seu nível mais fundamental, em seus componentes mais importantes, é produto de atividade inteligente.”
(Behe, “A Caixa-Preta de Darwin”, pág. 195)

Além de não apresentar um modelo explicativo alternativo ao mecanismo da seleção natural, essa postulação gera graves implicações não só em seus aspectos epistemológicos, mas até mesmo do ponto de vista lógico.

Sem confrontação

A ser aceita como verdadeira a hipótese de uma “mente inteligente” condutora da transformação dos seres vivos, e adotada como princípio fundamental para a TDI, essa teoria se torna ambiguamente capaz de deduzir não só uma predição expressa por um enunciado A como também seu contraditório não-A.

Embora espera-se que os adeptos do design inteligente não se atrevam a cometer o disparate de realizar deduções desse tipo, a simples contaminação da TDI por essa possibilidade impede essa teoria de ser confrontada empiricamente por meio de observações ou experimentos.

Em outras palavras, as inferências ou deduções a partir do axioma central da TDI não poderão ter conteúdo empírico, ou melhor, não atenderão ao requisito da falseabilidade, formulado por Popper como critério de demarcação entre as ciências empíricas e outras formas de conhecimento. Tudo estará subordinado à vontade de uma “mente inteligente” capaz de direcionar as mutações para qualquer direção que se queira, seja pela vontade do designer sobrenatural ou da conveniência de seus criadores mundanos.

Teoria estéril

A falta de um modelo explicativo que seja uma alternativa à seleção natural é uma omissão muito mais grave que as lacunas dos registros fósseis ou as faltas de explicações para determinadas transições evolutivas.

No final das contas, as principais formulações teóricas dos proponentes da TDI são muito mais objeções à TE. É o caso, por exemplo, do conceito de complexidade irredutível, descrito por Behe:

“Com irredutivelmente complexo quero dizer um sistema único composto de várias partes compatíveis que interagem entre si e que contribuem para sua função básica, caso em que a remoção de uma das partes faria com que o sistema deixasse de funcionar de forma eficiente.”
(Behe, “A Caixa-Preta de Darwin”, pág. 48)

Em outras palavras, o conceito de sistema irredutivelmente complexo serve para definir o que não poderia ser explicado pela seleção natural. Embora o próprio Behe admita em seu livro que nem tudo o que não tem explicação  não pode ser considerado impossível de vir a ser explicado (pág. 179), o autor lamentavelmente formulou esse conceito que a priori rejeita a possibilidade de virem a serem formuladas explicações evolutivas para esses sistemas a partir de outras estruturas.

Desse modo, no conceito de complexidade irredutível há uma boa dose de aposta naquilo que os lógicos chamam de falácia do “argumentum ad ignorantiam”, o qual, trocando em miúdos, equivale à afirmação de que se não conheço uma coisa, ela não existe.

Em que pesem as críticas a Michael Behe, é preciso reconhecer que ele e alguns proponentes da TDI têm se mantido distantes da militância obscurantista de criacionistas bíblicos e suas instituições. Infelizmente, esses bons exemplos de independência não têm sido seguidos por todos adeptos do design inteligente. Boa parte deles parece muitas vezes apostar nas mesmas ingerências religiosas espúrias no plano da ciência que foram fomentadas e acirradas desde a primeira metade do século 20.

Acirramento

Os apelos de adeptos da TDI à obra de Thomas Kuhn começaram como argumentos em favor da mudança paradigmática por meio do reconhecimento dessa teoria pela academia. No entanto, isso não seria possível mesmo que houvesse na TDI um modelo explicativo alternativo à seleção natural e não se fundamentasse em um axioma incompatível com a falseabilidade. Na verdade, a teoria de Kuhn não formula nenhuma obrigação de substituição de um paradigma por outro mais novo. Segundo esse pensador,

“A competição entre segmentos da comunidade científica é o único processo histórico que realmente resulta na rejeição de uma teoria ou na adoção de outra.”
(Kuhn, “A Estrutura das Revoluções Científicas”, pág. 27)

No entanto, os apelos de adeptos do design inteligente ao pensamento de Kuhn já passaram há algum tempo para outra linha de ação, que é a da desqualificação dos seus contrários. Ou seja, a obra desse autor passou a ser invocada para culpar a academia por não reconhecer a TDI e por não serem aceitos pelos periódicos de prestígio os artigos baseados nessa teoria. É uma afronta ao pensamento de Kuhn sua obra servir como álibi para a precariedade epistêmica do design inteligente.

Na verdade, a TDI tem dado razões de sobra para ser rejeitada pela academia, seja pelo envolvimento com as hostes do criacionismo bíblico, seja por sua precariedade epistêmica. Essa fragilidade se deve não só a seu fundamento sobrenatural e avesso à confrontação empírica, mas também à falta de modelos explicativos e a seus conceitos destinados apenas a negar a evolução.

Longe de ter seu foco na ampliação do conhecimento, a agenda da TDI é reativa e referenciada na teoria que pretende demolir. Essa agenda de orientação negativa é a verdadeira caixa-preta do design inteligente.