A pesquisa sobre cartas de Chico Xavier

Por Maurício Tuffani
O médium Chico Xavier, que morou por 40 anos em Uberaba (MG), e morreu em 2002. Imagem: Flávio Florido/Folhapress
O médium Chico Xavier, que morou por 40 anos em Uberaba (MG), e morreu em 2002. Imagem: Flávio Florido/Folhapress

A imprensa divulgou recentemente a publicação de uma pesquisa de brasileiros que concluiu que são verídicas as informações de 13 cartas redigidas de 1974 a 1979 pelo médium Chico Xavier (1910-2002) e por ele atribuídas ao estudante Jair Presente, morto por afogamento na cidade paulista de Americana aos 24 anos de idade em 1974. Financiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), o estudo*  foi publicado em setembro pela revista norte-americana “Explore”.

O periódico é editado pelo grupo holandês Elsevier, o maior do mundo no ramo de publicações científicas, que possui longa tradição com critérios editoriais de aceitação, análise e revisão de artigos. Apesar disso, a revista lida com assuntos não muito aceitos pela comunidade científica e define como seu campo temático “as artes de cura, consciência, espiritualidade, questões eco-ambientais e de ciência básica de todos estes domínios relacionados à saúde”.

Os autores do estudo são  Alexandre Caroli Rocha (doutor em teoria e história literária pela Unicamp e pós-doutor pela Faculdade de Medicina da USP), a jornalista Denise Paraná (doutora em Ciências Humanas pela USP e autora da biografia autorizada “A História de Lula, o Filho do Brasil”), a psicóloga Elizabeth Schmitt Freire (Universidade de Aberdeen, Escócia), o psiquiatra Francisco Lotufo Neto (USP) e o psiquiatra Alexander Moreira-Almeida (Universidade Federal de Juiz de Fora).

Apesar de vários comentários em redes sociais de que essa pesquisa teria comprovado que o famoso médium brasileiro se comunicava realmente com pessoas mortas, as reportagens que li sobre o assunto não afirmaram isso. Por exemplo, a jornalista Nathália Souza, de Juiz de Fora (MG), referindo-se a Almeida, escreveu:

“Concluímos que, dos 99 itens de informação identificados, 97 eram dados verídicos e correspondentes a um fato real”, diz o psiquiatra. Segundo ele, no entanto, o estudo não comprova que o conteúdo das cartas foi transmitido por alguém já morto, mas sim que as informações contidas ali são verdadeiras. Para o psiquiatra, há fortes indícios de uma percepção extrassensorial de Xavier, “fato que continuará a ser analisado e que carece de estudos posteriores”.
(“Pesquisadores analisam veracidade de cartas de Chico Xavier, Folha, 19.jan)

Pontos fracos

Somente agora li o artigo “Investigating the fit and accuracy of alleged mediumistic writing: A case study of Chico Xavier’s letters” (Investigando o acerto e a precisão de suposta escrita mediúnica: Um estudo de caso de cartas de Chico Xavier). Não há como negar que os autores do estudo se cercaram de cuidados importantes em relação ao material de trabalho analisado, como mostra o trecho a seguir.

“Uma das deficiências deste estudo é que a avaliação do risco de vazamento de informações se baseou em relatos dos participantes do que aconteceu nas sessões mediúnicas e em suas lembranças de que informações eles haviam comunicado ao médium. Uma vez que essas sessões mediúnicas ocorreram há mais de 30 anos, as lembranças da extensão da comunicação deles com o médium poderia ter sido imprecisa ou distorcida. A pesquisa sobre a memória indica que a lembrança de um evento por uma pessoa pode ser alterada por informações posteriores ou por influência do grupo, levando a erros de longa duração e até mesmo para a criação de memórias completamente falsas.”

Por outro lado, os pesquisadores destacam que apesar desse risco de imprecisão, a primeira carta de Xavier atribuída a Jair contém informações que dificilmente o médium teria tido tempo e oportunidade para obtê-las entre a chegada dos participantes ao local da sessão mediúnica, em Uberaba (MG) e a redação de”uma quantidade tão significativa informações específicas”.

Apesar desses cuidados, concordo com o seguinte comentário feito no Facebook pelo professor de filosofia Ari Tank Brito, da Universidade Federal de Mato Grosso.

“No caso dessa pesquisa, há um grande erro de procedimento. Mesmo que seja comprovado que as informações passadas pelo médium aos seus consultantes tenham sido totalmente verdadeiras e mesmo que algumas delas fossem ainda desconhecidas por eles, não procede dizer que essas informações obrigatoriamente tenham sido obtidas por qualquer meio psíquico sem antes comprovar que o dito médium de maneira nenhuma poderia tê-las obtido por outras vias tidas como normais. Isso não foi feito. No caso em questão, tratava-se de um brasileiro com parentes, amigos e conhecidos. Deixar de lado a primeira e óbvia hipótese, a de que as pessoas que conheceram o falecido sabiam coisas sobre ele e as contavam, é partir de uma base falsa e melar todo o empreendimento.”

Comparações

Discordo, no entanto, de algumas críticas que procuraram desmerecer ou, na melhor das hipóteses, diminuir a importância do estudo, tentando fazer o mesmo com a revista “Explore” ao apontar seu fator de impacto — o dado aferido anualmente por meio da base de dados Web of Science, da empresa britânica Thomson Reuters, e divulgado em seu “JCR” (Journal of Citations Report), que mede a repercussão média de um periódico no conjunto de todas as publicações científicas de padrão internacional.

O fator de impacto de um periódico em um ano corresponde ao quociente da divisão do número total de citações feitas por outros estudos em um determinado nesse mesmo ano a todos os artigos publicados pelo mesmo periódico nos dois anos anteriores, pelo número total de artigos publicados pela mesma revista.

O fator de impacto da “Explore” em 2013, divulgado no ano passado, é 0,935. Algumas críticas à “Explore” se basearam em comparações desse indicador com os de algumas das revistas mais importantes do mundo da área das ciências médicas e da saúde. Nessa área existem periódicos de altíssimo fator de impacto, como o “Journal of the American Medical Association”, que em 2013 foi de 30,387, e a “Nature Medicine”, de 28,054. Maiores ainda são os indicadores de algumas revistas interdisciplinares, como a norte-americana “Science” (31,477) e a britânica “Nature” (42,351).

O jornalista Carlos Orsi, por exemplo, escreveu dois posts, cuja leitura recomendo, com observações críticas relevantes à pesquisa em seu blog no site da revista “Galileu”, onde já fui redator-chefe e editor-chefe. No segundo post ele comparou o fator de impacto de 0,935 da revista ao de 39,207 do periódico de medicina britânico “The Lancet”, que é editado também pelo grupo Elsevier.

No entanto, somente 19 das cerca de 400 revistas científicas brasileiras de padrão internacional têm o fator de impacto de 2013 superior ao 0,935 da “Explore”. (O maior é 2,500 da “Diabetology & Metabolic Syndrome”). E muitas dessas publicações não podem ser consideradas de má qualidade.

No final das contas, apesar dessas e outras críticas, acho importante que a pesquisa tenha sido realizada e que tenha continuidade, como está previsto por seus autores. Não faz sentido não ser estudada a atuação do médium brasileiro que foi um dos mais famosos do mundo e que teve grande influência na cultura de nosso país.

PS – O professor Alexander Moreira-Almeida enviou atenciosamente para mim uma mensagem com explicações sobre seu estudo e respostas a algumas das considerações do post acima, e eu a publiquei em Autor de pesquisa sobre Chico Xavier responde” (4.fev).