Em vez de ter divulgado ontem (quarta-feira, 4.jan) o dado de 5,2% de armazenamento de água no sistema Cantareira, a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) deveria ter indicado 24,1% negativos em relação ao volume útil original desse conjunto de reservatórios antes de começar a ser usado o chamado volume morto, segundo Antonio Carlos Zuffo, professor de engenharia hidráulica da Unicamp.
“Essa forma que está sendo empregada para informar à sociedade o armazenamento do Cantareira equivale a um extrato bancário que não mostra o saldo devedor de uma conta corrente que está negativa no cheque especial”, diz Zuffo. Desde maio do ano passado, a Sabesp tem bombeado águas abaixo do nível de captação do chamado “mínimo operacional” desse sistema que chegou a abastecer cerca de 10 milhões de habitantes da Grande São Paulo e hoje atende a 6,5 milhões de pessoas.
Os 24,1% negativos calculados pelo pesquisador representam o déficit de 237,04 bilhões de litros do sistema registrado ontem, considerando o esgotamento do seu volume útil, que é de 982,07 bilhões de litros. Os 5,2% positivos são indicados pela Sabesp em relação aos 50,09 bilhões de litros que restam da parte do volume morto autorizada para uso.
Na página “Situação dos Mananciais” da companhia, os percentuais diários são mostrados sem indicação dos volumes aos quais eles se referem e do déficit do sistema.
Além de prejudicar a compreensão do público sobre a situação real do armazenamento do Cantareira, os percentuais positivos sobre esse sistema divulgados pela Sabesp em sua página são inadequados também para orientar e mobilizar a população na atual crise de abastecimento, segundo Zuffo.
Em nota, a companhia de abastecimento do governo paulista defendeu os percentuais positivos diários divulgados em seu site, afirmando que
“(…) não utiliza percentual negativo, mesmo com a utilização da primeira e da segunda cotas da reserva técnica, pois na prática o Cantareira tem água disponível atualmente”.
ALTO TIETÊ
Jefferson Nascimento de Oliveira, professor de engenharia hidráulica da Unesp de Ilha Solteira, concorda com a crítica aos indicadores a Sabesp. Para ele, os percentuais diários da companhia sobre o nível do Cantareira “mascaram e atenuam a gravidade não só da disponibilidade de água nesse sistema, mas também do comprometimento da sua segurança de seu potencial de produção hídrica”. “O sistema está sob o risco de colapso”, afirma.
O pesquisador da Unesp também concorda com a forma de seu colega da Unicamp para calcular o armazenamento de água nesse sistema, que resulta em indicadores negativos. “Isso vale também para o sistema Alto Tietê, cujo volume morto já começou a ser usado”, diz Oliveira.
Júlio Cerqueira Cesar Neto, professor aposentado de hidráulica da USP e ex-diretor de planejamento do Daee (Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo) no governo de Franco Montoro (1983-1986), concorda com as críticas de Zuffo e Oliveira aos percentuais da Sabesp. Segundo ele, esses dados são “incompatíveis com a transparência de informação da qual precisávamos antes de chegar à crise atual e que agora é mais necessária ainda”.
DIFERENÇA
Além de contestar os indicadores positivos do Cantareira, os dois pesquisadores têm um segundo motivo para desaprovar seu uso. Para calcular esses percentuais diários, a Sabesp se baseia apenas nos 982,07 bilhões de litros de capacidade útil do sistema, sem considerar os 287,5 bilhões do volume morto já disponibilizados para consumo desde o ano passado.
A Sabesp tem afirmado que seus índices sobre o Cantareira consideram o volume morto em uso. No entanto, na fração do cálculo desses percentuais a companhia tem computado somente no numerador o acréscimo por bombeamento, mantendo o mesmo denominador que já usava antes de começar a usar águas mais profundas a partir de 15 de maio do ano passado.
Matematicamente, isso equivale a despejar a água de um balde em um outro, de capacidade maior, e afirmar que o percentual de volume de líquido no segundo recipiente é igual ao do que havia no primeiro.
Em relação aos dados de ontem, por exemplo, mesmo que fosse aceitável usar os percentuais positivos —ou seja, sem mostrar o “saldo devedor” do sistema Cantareira— os 5,2% divulgados pela Sabesp para indicar os 50,09 bilhões de litros ainda disponíveis de “cheque especial”, teriam de ser corrigidos para 4,0%.
Essa divergência já havia sido noticiada pela Folha no ano passado poucos dias após o início do bombeamento do volume morto (“Sabesp e grupo de crise divergem sobre nível de água do Cantareira”, 20.mai.2014). Este blog retomou o problema em outras postagens (“A água ainda não acabou, mas a informação já”, 20.out.2014).
EXPLICAÇÃO
Em nota, a Sabesp afirma que “defende como correta” sua conta, apesar de reconhecer que o restante de água em bombeamento não faz parte do volume útil original, que é usado como base do cálculo de seu percentual. Segundo a companhia,
“em relação ao percentual da reserva técnica, não se trata de uma quantidade integralizada e sim agregada, ou seja, esta água está sendo usada no momento, mas não faz parte do volume normal do sistema”.
Para explicar o cálculo de seus percentuais positivos, a Sabesp afirmou que ele se baseia nos seguintes dados:
a) Volume útil originário total – 982,07 milhões de m3
b) Reserva estratégica – 287,5 milhões de m3
c) Volume de água acrescentado – cerca de 29% do volume útil originário
A nota, no entanto, não indica o volume ainda disponível ao qual se refere seu percentual, nem outro dado para obtê-lo, ainda que indiretamente, como o déficit de água em relação à capacidade útil original do sistema.
A Sabesp não comentou as afirmações dos entrevistados sobre prejuízo dos indicadores para a compreensão e orientação da população.