Desde a semana passada tenho recebido várias mensagens de opositores ao darwinismo em contestação a meu post “Feliciano desarquiva projeto criacionista para escolas” (12.fev). O texto informou a ressurreição da proposta de lei do deputado Marco Feliciano (PSC-SP) para tornar obrigatório o ensino do criacionismo na educação básica pública e privada do país.
Algumas dessas mensagens apresentaram o mesmo argumento, que na verdade não passa de uma repetitiva mentira criacionista que envolve o médico e geneticista Francis Collins. Desde 2009 ele é diretor dos NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos), um conglomerado de 27 centros dos quais faz parte o Instituto Nacional de Pesquisa o Genoma Humano, que ele também dirigiu de 1993 a 2008.
Somente uma dessas mensagens chegou na forma de comentário ao post, e está publicada na mesma página, no espaço destinado às manifestações de leitores. As demais —quase todas em tom de repreensão por eu desconsiderar a suposta crença de Collins no criacionismo— vieram por e-mails, que respondi convidando seus remetentes a lerem minha resposta ao citado comentário enviado a este blog.
Essa mentira, a de que Collins é criacionista, já esteve amplamente espalhada em sites e blogs de grupos religiosos fundamentalistas cristãos. Muitas dessas páginas já foram reeditadas nos trechos que continham essa falsidade, mas quase sempre sem registrar a desinformação do texto anterior. E, pior, muitas vezes sem informar que o cientista não é criacionista, deixando ambígua a posição dele em relação ao assunto.
Desse modo, essa mentira sobre o pesquisador tem retornado insistentemente em redes sociais e em comentários em blogs.
Best seller
Collins se tornou famoso fora dos círculos acadêmicos como o líder internacional do Projeto Genoma Humano que, em junho de 2000, ao lado do presidente Bill Clinton, dos EUA, participou do anúncio mundial da decifração da sequência genética do DNA humano.
Depois disso, Collins lançou em 2006 seu best seller “A Linguagem de Deus”, que foi publicado originalmente nos EUA com o subtítulo “Um cientista apresenta evidências para a fé”, mas que na edição brasileira do ano seguinte foi traduzido como “Um cientista apresenta evidências que Ele existe”.
Collins é teísta. Mas, diferentemente do que o título dessa sua obra pode sugerir para pessoas que não a leram atentamente, ele não é criacionista. Não entrarei aqui no mérito de sua proposta da evolução teísta, que não é nada tem a ver com a interpretação literal bíblica sobre a criação do mundo e a origem dos seres vivos. Ele concorda com a ideia de que humanos e outras espécies têm um ancestral comum e não concorda com a ideia de uma evolução da vida guiada por forças sobrenaturais.
O que ele diz
Enfim, passo a mostrar algumas palavras do próprio Collins na tradução brasileira de seu livro.Elas são mais que suficientes para deixar claro que ele não é defensor do criacionismo.
“Jovens criados em lares e igrejas que insistem no criacionismo cedo ou tarde encontrarão evidências científicas avassaladoras a favor de um universo antigo e o parentesco de todas as criaturas vivas por meio de um processo de evolução e seleção natural. Que escolha terrível e desnecessária essas pessoas terão de enfrentar! Para abraçar a fé da infância, serão obrigadas a rejeitar um corpo de informações científicas extenso e rigoroso, cometendo suicídio intelectual.” (págs. 183-184)
Collins também não é adepto da teoria do design inteligente, proposta por pesquisadores antidarwinistas para substituir a da evolução pela seleção natural, rejeitada por eles. (Mais informações sobre essa proposta e sua “agenda negativa” estão em meu post “A caixa-preta do design inteligente”, 21.dez.2014) Algumas das objeções críticas dele a essa proposta, à qual ele se refere pela sigla ID (intelligent design), estão nos seguintes trechos do mesmo livro.
“Antes de tudo, o Design Inteligente não funciona como um modo fundamental de se qualificar como teoria científica. Todas as teorias científicas representam uma estrutura que dá sentido a um conjunto de observações experimentais. Mas a utilidade principal de uma teoria não é olhar para trás, e sim para a frente. Uma teoria científica viável prevê outras descobertas e sugere abordagens para verificações experimentais adicionais. O ID apresenta uma falha imensa nesse sentido.” (págs. 193-194)
“Além do mais, o ID retrata o Todo-Poderoso como um Criador atrapalhado, que precisa intervir de tempos em tempos para consertar as insuficiências do próprio plano original, dele que gerou a complexidade da vida. Para quem crê em Deus e fica admirado diante de Sua inteligência e de Seu gênio criativo quase inimagináveis, eis aí uma imagem bastante insatisfatória.” (pág. 200)
Não tenho aqui a pretensão de dissuadir de suas crenças os criacionistas e os adeptos do design inteligente. Mas é preciso denunciar essa mentira recorrente baseada na usurpação da credibilidade de um cientista de renome.