Tenho ressaltado neste blog que não cabe à ciência tratar de questões de fé. Isso não quer dizer que cientistas e religiosos não podem abordar a relação entre a ciência e a religião. Isso é o que fez, por exemplo, com seu livro “A Linguagem de Deus” (2006), o médico e geneticista Francis Collins, diretor dos NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos), que foi líder internacional do Projeto Genoma Humano de 1993 a 2008.
Como não sou religioso, não concordo com a visão de Collins nesse livro, que comentei em um post recente. Mas não posso deixar de reconhecer a honestidade intelectual de seu autor e sua correta abordagem de conceitos científicos. Infelizmente existem pessoas com formação acadêmica, inclusive com nível de doutorado, que descobriram uma forma eficiente para ganhar fama e dinheiro explorando temas da ciência, mas às custas da desinformação e de um público ávido por mensagens que confirmem sua convicções.
Graças a essa insuficiência crítica coletiva, está de volta ao Brasil para mais uma temporada de eventos e palestras, em cidades como Brasília e São Paulo, o físico indiano Amit Goswami, doutor pela Universidade de Calcutá e professor emérito da Universidade do Oregon, que se apresenta como “referência mundial em estudos que buscam conciliar ciência e espiritualidade”.
Sucesso
Goswami é um dos físicos mais conhecidos da atualidade, não por sua atuação na ciência, mas por seu sucesso com best sellers como “O Universo Autoconsciente”, “A Física da Alma”, “O Médico Quântico”, “O Ativista Quântico” e outros. Ele é famoso também por sua participação nos filmes “Quem Somos Nós?” (2004) e “O Segredo” (2006) e por suas palestras organizadas em vários países pelos editores de seus livros.
Infelizmente, além de abordar sem consistência lógica a relação entre ciência e fé, Goswami tem a pretensão de ter formulado um “novo paradigma científico”, segundo o qual o universo é inconsistente sem o pressuposto da existência de Deus. A inconsistência, na verdade, está em teses como essa.
Independentemente de se acreditar ou não na existência de uma entidade divina, esse tipo de conexão entre crença religiosa e o conhecimento científico tem sido descartada até mesmo por teólogos como contrassenso lógico e epistemológico, graças aos avanços nos estudos da estrutura lógica das teorias científicas.
‘Picaretagem’
Goswami tem propalado por meio de livros, palestras e entrevistas considerações completamente distorcidas sobre conceitos da física, especialmente da mecânica quântica. Algumas de suas frases chegam a ser puro non-sense, como o seguinte trecho de seu livro “A Física da Alma”:
“As ciências gostam de simetria, especialmente a simetria do tempo. Se o tempo é não linear no domínio não local e podem chegar a nós coisas do futuro sem qualquer sinal, então elas podem vir do passado de forma não local.”
(pág. 45 da edição brasileira de 2005)
A não localidade a que Goswami se refere nesse trecho é, de fato, um conceito ligado a um dos mais importantes experimentos da física do século 20. Publicados em dezembro de 1982 pelo francês Alan Aspect e por seus colaboradores, os resultados desse estudo contrariaram a previsão da teoria da relatividade de Einstein sobre a impossibilidade de velocidades maiores que a da luz entre partículas situadas em diferentes e extremamente distantes locais do universo. No entanto, o que o indiano faz com esse conceito imbróglio sem sentido, misturando-o com o “tempo não linear”.
Entre os poucos cientistas que saem de sua zona de conforto para apontar absurdos como esse, vale a pena destacar Leandro Tessler, físico da Unicamp. Em seu blog publicou o post “Picaretagem quântica”, do qual destaco o trecho a seguir, referente a uma afirmação de Goswani no filme “Quem somos nós?” sobre o físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976), considerado o criador da mecânica quântica.
“No filme citado ele diz que ‘O mundo material que nos cerca não é nada mas movimentos possíveis da consciência. Eu escolho minha experiência a cada momento. Heisenberg disse que os átomos não são coisas, apenas tendências’. Heisenberg nunca disse isso. Os átomos estão aí, independentemente de pensarmos neles ou o que pensemos deles.”
Irrelevância
Graças ao convite da produção do programa “Roda Viva”, da TV Cultura, tive a oportunidade de questionar pessoalmente Goswami em agosto de 2007. Naqueles dias ele estava em visita ao Brasil para palestras e lançamento de livros. Seu aparato de divulgação o apresentava como autor de ideias que estariam despertando polêmicas na ciência.
No programa, que foi exibido em fevereiro de 2008, apresentei registros da base de dados Web of Science, que indicavam nove trabalhos publicados por Goswami desde janeiro de 1986, quando ele deixou o que passou a chamar de “ciência materialista”. Esses nove papers tiveram, até a véspera da entrevista, apenas 46 citações em todo o mundo —quase todas dele mesmo ou de seus colaboradores— em artigos indexados nessa base de dados.
Ou seja, na realidade o trabalho de Goswami é irrelevante para a ciência. Não havia, como ainda não há, repercussão de seus trabalhos para a comunidade científica, ao contrário do que pregavam os divulgadores de seus best sellers.
Entrevista
Em relação a seus livros —por dever de ofício, tive de ler quatro deles antes da entrevista—, eu disse também a Goswami que eles articulavam ideias científicas apenas sob os aspectos que interessam a ele, diferentemente do que costuma ser feito por cientistas, por mais parciais que eles sejam. Dei como exemplo o fato de ele fazer inúmeras considerações sobre Einstein e a mecânica quântica, mas omitindo que esse cientista gastou as últimas três décadas de sua vida combatendo essa teoria.
A resposta de Goswami, traduzida pela produção do programa, foi um primor de dissimulação. Reproduzo aqui parte dela:
“Eu não acho que bater de frente em debates com cientistas específicos fará alguma coisa a favor da nossa causa de mudança de paradigma. O paradigma será mudado a partir do peso de evidências em favor dele. Atualmente, o que nos ajuda muito é que temos aplicações práticas na área da medicina, da psicologia… Infelizmente, eu acho que você não consultou quantas vezes a minha obra é citada em trabalhos de psicólogos, de profissionais da saúde e de outros, ainda, não-pertencentes às ciências puras. Sim, é verdade que aqueles das ciências puras, os físicos, os químicos e até mesmo os biólogos, preferem oferecer a chamada ‘negligência benigna’. Eles não se envolvem com essa questão, pois fazendo isso acabarão dando maior publicidade para mim, algo considerado por eles prejudicial à sua causa. Então, deixá-los viver do modo deles e nós do nosso é agora a melhor abordagem.”
Trocando em miúdos, segundo Goswami não há discussão sobre seu suposto “novo paradigma científico” porque há um complô de cientistas para não lhe dar visibilidade. Na verdade, diferentemente do que ele afirma com essa visão conspiracionista, o que falta é cientistas como Tesller que se dispõem a denunciar essas e outras distorções da ciência.
Niilismo
Na verdade, o sucesso do trabalho do físico indiano não se deve ao público interessado em ciência nem também àquele que pede por abordagens críticas sobre o conhecimento. Esse sucesso se deve muito mais ao descrédito geral das instituições e à esperança niilista de que todas elas, inclusive a ciência, desmoronem para dar a algo de novo.
Na busca da verdade, porém, a esperança é a primeira que deve morrer. Essa é a advertência na entrada do Inferno, na obra de Dante: “Lasciate ogne speranza voi ch’entrate” (Abandonai toda esperança vós que entrais, em italiano – “A Divina Comédia”, Inferno, canto III).
No final das contas, parece que estamos muito próximos de um processo histórico semelhante à destruição da civilização greco-romana pela ascensão do cristianismo antes do início da Idade Média.