No mesmo dia da notícia do que parece ser um relevante testemunho fóssil da evolução dos hominídeos, o CFBio (Conselho Federal de Biologia) caiu numa cilada que tem sido comum nas contestações aos opositores da seleção natural dos seres vivos.
O deslize aconteceu na divulgação do conselho sobre seu ofício enviado ao Congresso Nacional ontem (quarta-feira, 4.mar), “repudiando veementemente” um projeto de lei obscurantista que pretende obrigar todas as escolas do país a ensinar o criacionismo, com sua interpretação bíblica literal sobre a criação do mundo, dos seres vivos e também do homem.
Ao criticar essa proposta apresentada em novembro do ano passado pelo deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), o CFBio conclamou os biólogos a também se manifestarem contra ela.
Não tive acesso ao ofício enviado pelo conselho aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado. Mas o que importa aqui é o seu comunicado, que certamente será muito mais conhecido.
Casca de banana
Nesse informe do CFBio há um parágrafo que é uma terrível “casca de banana” no caminho de quem vier a usá-lo como argumento contra o projeto de lei do deputado criacionista. Na verdade —e eis o motivo de minha intransigência, que pode parecer mera implicância ou impertinência—, esse trecho toca em um ponto que tem sido habilmente explorado por certos contestadores do darwinismo muito articulados e sofisticados, diferentemente do parlamentar com sua indouta e anedótica proposta.
Entre esses opositores ao darwinismo mais articulados estão alguns integrantes da Sociedade Criacionista Brasileira e da Sociedade Brasileira do Design Inteligente, com os quais tenho mantido um debate cordial, mesmo com algumas boas provocações de vez em quando. Aliás, nem mesmo essas entidades apoiam a proposta desse infeliz projeto de lei (ver páginas dos links em seus nomes).
Acreditando que o CFBio teve nessa história a melhor das intenções, transcrevo a seguir o desastrado parágrafo desse seu comunicado.
“Ao contrário do que está exposto no PL 8099/2014, a Teoria da Evolução não é uma crença e, portanto, não tem nenhum fundamento dizer que ensinar evolução nas escolas é violar a liberdade de crença. O evolucionismo se baseia em observações fundamentais e em pesquisas científicas que surgiram com experimentos devidamente comprovados. A Evolução das espécies através da seleção natural não é uma teoria, mas uma coleção de fatos amplamente comprovados.”
Estrago
Além de muito mal escrito —pois se autocontradiz por se referir à “Teoria da Evolução”e depois negar que ela seja uma teoria— esse parágrafo está coalhado de precariedades cognitivas. A começar pela explicação com “uma coleção de fatos amplamente comprovados”. Isso serve para várias coisas que não são teorias científicas, como uma gravação em vídeo de uma competição esportiva ou um relatório do TSE sobre os resultados de uma eleição.
Mas o verdadeiro estrago está na última frase desse parágrafo. Em termos práticos, ou seja, no combate milimétrico que vem sendo travado na opinião pública contra o darwinismo —e que vem sendo enfrentado principalmente pelo empenho de uma minoria de estudiosos do evolucionismo mais atentos—, essa tentativa desastrada de explicação escorrega em uma das ciladas mais bem exploradas pelo aparato de divulgação criacionista.
Ao negar, em vez de corrigir, a falaciosa afirmação de que “a evolução é só uma teoria”, até mesmo alguns cientistas acabam afirmando uma grande bobagem, a de que a teoria da evolução é cientificamente comprovada. É uma bobagem porque nenhuma teoria científica pode ser comprovada. E a exploração dessa bobagem tem feito sucesso.
Previsões
A evolução por meio da seleção natural não é uma teoria nos sentidos dessa palavra no senso comum, desde acepção ingênua de oposição entre o teórico e o prático ao significados de hipótese ou de especulação. Também não é no sentido das teorias da filosofia ou das ciências humanas, que não permitem prever fenômenos, da mesma forma que as ciências naturais, como a física, a química, a biologia, a geologia, a meteorologia, a astronomia e outras.
A evolução é uma teoria científica. Não encompridarei ainda mais a conversa com as definições disso, que são várias. Mas vale a pena ressaltar que as teorias científicas permitem, em seus campos de atuação específicos, fazer previsões de fenômenos e explicar aqueles que já são observados, conhecidos.
Diferentemente do que muitas pessoas afirmam, inclusive muitos cientistas, uma teoria científica não é comprovada cada vez que um fenômeno previsto por ela é confirmado por experiências ou cada vez que ela explica um fato antigo ou novo observado. Quando acontecem confirmações ou explicações como essas, a teoria é corroborada.
Refutações
Mas as previsões das teorias científicas podem ser refutadas por experimentos ou pelo fracasso de tentativas para explicar fatos a partir dela. O problema é que essas refutações acontecem muitas vezes sem ter uma nova teoria que explique não só o que aquela em uso já elucidava, mas também as novas experiências e observações não esclarecidas.
E mesmo que já exista uma nova proposta de teoria para substituir uma que já enfrenta problemas, sempre há resistências por parte de cientistas que preferem fazer explicações por meio de gambiarras. A chamada mudança de paradigma acaba acontecendo muito mais em função de novas gerações substituírem as mais antigas e resistentes à inovação.
No momento não há questionamentos da evolução pela seleção natural que justifiquem sua substituição por outra teoria. Aliás, não há outra teoria que possa substituí-la. Apesar de ter essa pretensão, o design inteligente é incapaz de ampliar o conhecimento, pois só se presta a tentar negar a teoria que ainda funciona. E esse olhar exclusivamente retrospectivo é a essência do que eu chamei de agenda negativa em meu post “A caixa-preta do design inteligente” (21.dez.2014).
Fósseis
Instituições criacionistas e do DI, por meio de inúmeros palestrantes, professores, sites e blogueiros —bombardeiam a falsa imagem de uma escassez de fósseis para negar o sucesso das previsões desde Darwin sobre o encontro de registros evolutivos.
Na verdade, uma simples consulta a sites como o do Museu de Paleontologia da Universidade da Califórnia em Berkeley permite acesso a registros detalhados de 52.377 vertebrados, 39.243 microfósseis, 42.408 plantas e 251.077 invertebrados. Ou o do Museu Nacional de História Natural da Smithsonian Institution, com 604.512 registros no Departamento de Paleobiologia. Sem falar em tantos outros acervos menos acessíveis por enquanto.
Teoria, sim
Todas essas corroborações por meio de fósseis não completam o histórico evolutivo dos seres vivos, como exigem falaciosamente muitos criacionistas e adeptos do DI. Não completam porque a teoria da evolução não é o Verbo que supostamente teria criado o mundo e todos os seres vivos no Gênesis. Com Seu conhecimento prévio, eterno e total, para Ele, aconteça o que acontecer, “não há” e nunca haverá “nada de novo debaixo do sol”.
Amplamente corroborada não só pelo registro fóssil com centenas de milhares de peças, mas também por novas gerações de bactérias que a cada dia surgem mais resistentes a antibióticos e ainda por tantos outros fenômenos previstos com base na seleção natural desde os tempos de Charles Darwin (1809-1882), a evolução tem todos os desafios, dúvidas e dificuldades que uma teoria científica deve ter, e não as certezas eternas do saber clamado pelo Eclesiastes.
A evolução é, sim, uma teoria. E isso não a diminui, como querem criacionistas mal intencionados e como pensam cientistas equivocados.