Falso professor edita revista selecionada pela Capes

Por Maurício Tuffani

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Formulário preenchido pelo engenheiro Abdul Razaque com a falsa qualificação dele como professor da Universidade de Bridgeport, nos Estados Unidos. Imagem: Reprodução.
Formulário preenchido pelo engenheiro Abdul Razaque com a falsa qualificação dele como professor da Universidade de Bridgeport, nos Estados Unidos. Imagem: Reprodução.

A revista acadêmica bimestral de engenharia “Ijet” (“International Journal of Engineering and Technology”) está desde 2013 na seleção Qualis Periódicos, da Capes (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que serve para orientar pesquisadores, professores e pós-graduandos brasileiros a escolher revistas científicas para publicar seus artigos. Mas ontem (quinta-feira, 5.mar) a publicação teve seu nome temporariamente removido do site do seu próprio grupo editorial, que hoje reconheceu que seu trabalho ainda não pode ser comparado com o das editoras acadêmicas de renome.

A exclusão temporária aconteceu após o o publisher IACSIT (Associação Internacional de Ciência da Computação e Tecnologia da Informação), sediado em Singapura, saber que o editor-chefe da revista, o paquistanês Abdul Razaque, é aluno de doutorado da Escola de Engenharia da Universidade de Bridgeport, dos Estados Unidos, e não professor dessa instituição, como ele se identifica pelo menos desde 2013 no site da publicação que ele dirige.

“Estamos realmente chocados por saber da verdade”, disse Yoyo Zhou, diretora-executiva do IACSIT, ao responder à mensagem deste blog, que lhe informou a divergência entre a forma de Razaque se identificar no site da “Ijet” e sua verdadeira qualificação acadêmica na página de pós-graduandos da Escola de Engenharia daquela universidade.*

Detalhe da página da Escola de Engenharia da Universidade de Bridgeport, que mostra sua relação de alunos de doutorado. Imagem: Reprodução
Detalhe da página da Escola de Engenharia da Universidade de Bridgeport, que mostra sua relação de alunos de doutorado. Imagem: Reprodução

Razaque também se identificou como professor dessa universidade ao preencher o formulário que encaminhou à IACSIT para se candidatar ao cargo de editor-chefe. “Pedimos desculpas por não verificar a informação com cuidado”, disse Zhou ontem na mensagem em que encaminhou cópia do documento para este blog. “Se tudo o que está no formulário não for verdade, nós os desqualificaremos de nosso comitê e interromperemos nossa parceria com ele”, acrescentou.

‘Editora nova’

Mas não foi bem isso o que o publisher acabou fazendo, conforme mensagem enviada nesta manhã por Ron Wu, outro diretor-executivo da IACSIT.

“Com base nas informações que você forneceu sobre o editor-chefe da “Ijet”, Abdul Razaque, na pesquisa que fizemos sobre ele e em sua atitude evasiva, decidimos retirar a informação sobre ele do site da revista para eliminar qualquer influência negativa que possa causar à “Ijet” e ao público. E vamos reforçar nossa avaliação e nossa verificação para garantir que no futuro coisas como isso nunca venham a acontecer novamente.
Obrigado por fornecer essa informação importante para nós. Por sermos uma editora nova, temos de admitir que não temos comparação nenhuma com as editoras de renome, que têm melhores apresentações, artigos publicados e processo de revisão mais maduro em todos os aspectos dos periódicos. A IACSIT ainda está crescendo, e acho que vamos fazer melhor no futuro.”

“Predatórios”

A IACSIT publica em acesso aberto na internet 18 revistas acadêmicas que cobram a taxa de US$ 350 (R$ 1.050) dos autores para cada artigo aceito. A editora está incluída desde janeiro de 2012 anterior na lista de “publishers predatórios” do blog “Scholarly Open Access”, editado pelo biblioteconomia Jeffrey Beall, professor da Universidade do Colorado em Denver, nos Estados Unidos.

A lista relaciona editoras que exploram sem rigor científico revistas que cobram taxas de pesquisadores para publicar seus artigos em acesso aberto na internet. Tanto no acesso livre como no pago, periódicos bem conceituados demoram até mais de um ano para analisar e aceitar artigos, ou rejeitá-los. Os editores predatórios reduzem esse intervalo a poucos meses ou semanas, e raramente rejeitam papers.

“Quanto mais artigos eles aceitam e publicam, mais dinheiro eles fazem” disse Beall em entrevista para minha reportagem “Eventos científicos ‘caça-níqueis” preocupam cientistas brasileiros”, publicada pela Folha na terça-feira (3.mar).

Seleção

Apesar de a IACSIT estar na lista de Beall desde 2012 e de ter as dificuldades editoriais que seu próprio diretor-executivo reconhece, a “Ijet” e duas outras revistas desse publisher —“International Journal of Modeling and Optimization” e “International Journal of Computer Theory and Engineering”— foram selecionadas em 2013 por quatro comitês da Capes, cada um deles com im coordenador, dois coordenadores-adjuntos e cerca de 20 consultores.

Dois desses comitês são de engenharia, um é de arquitetura e urbanismo e outro é de ciência da computação.

Nada a declarar

Procurada desde terça-feira (3.mar) para explicar por que selecionou para o Qualis periódicos da IACSIT e de outros publishers que constam nessa relação de predatórios, a Capes informou ontem (quinta-feira, 2.mar) que não se pronunciará mais sobre o assunto. Segundo a agência, tudo o que poderia dizer já está na nota que encaminhou na semana passada em resposta às perguntas que enviei para fazer a reportagem que citei acima.

A nota da Capes foi evasiva. Ela explica que a inclusão de periódicos no Qualis é feita com base na produção acadêmica brasileira no período correspondente ao da avaliação da qualidade dos programas de pós-graduação. Em outras palavras, as três revistas da IACSIT entraram no Qualis porque professores e pesquisadores brasileiros publicaram artigos nelas no período de 2010 a 2012 e os cerca de 200 coordenadores e consultores dos quatro setores envolvidos não viram objeções para selecioná-las.

A íntegra dessa resposta, que se omitiu sobre irregularidades na inclusão de outras revistas, está na versão online da citada reportagem.

Assim como a IACSIT, não consegui entrar em contato com Razaque. As mensagens que enviei a Razaque foram rejeitadas pelo servidor de e-mails da Universidade de Bridgeport. O número de telefone dos Estados Unidos fornecido por ele no formulário que enviou à editora está fora de serviço.

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* Em seu perfil aberto no LinkedIn, Abdul Razaque se apresenta como “Research Associate” da Universidade de Bridgeport e mostra como endereço relacionado a essa função o mesmo que consta no formulário que ele submeteu à IACSIT.  A mesma informação foi registrada dessa forma por ele no portal acadêmico ResearchGate. Notei agora (6.mar, 14h39) pelo Google Maps que esse endereço não é da administração nem de unidade acadêmica da universidade, mas de um prédio residencial de dormitórios de estudantes.

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