Desde 2010 Ministério da Educação Superior da Malásia não reconhece artigos de seus pesquisadores em revistas de uma editora acadêmica nigeriana e também não dá apoio para a publicação de estudos nelas. Mas no Brasil, desde a avaliação trienal da pós-graduação concluída em 2013 pelo MEC, 13 revistas dessa mesma editora constam da base de dados online Qualis Periódicos, que serve para orientar pesquisadores, professores e pós-graduandos a escolher publicações científicas para seus trabalhos.
A editora nigeriana é a Academic Journals, que usa nome muito semelhante ao da norte-americana Academic Journals Inc. No início de 2013, alertas na internet sobre a má qualidade de publishers acadêmicos desse país foram feitos por veículos sobre a comunicação científica, como o do “SciDev.Net” (21.jan.2013), e pela própria revista “Nature” (27.mar.2013).
Além dessa divulgação que ainda era recente, já fazia pelo menos dois anos que a imprensa, instituições científicas e pesquisadores repercutiam na internet a inclusão dessa editora na lista de “publishers predatórios” do blog “Scholarly Open Access”, do biblioteconomista Jeffrey Beall, professor da Universidade do Colorado em Denver (EUA), que se tornou referência no assunto.
E desde o final de 2010 vários informativos acadêmicos da Malásia já incluíam essa editora nigeriana em seus lembretes sobre os periódicos não reconhecidos pelo sistema de educação superior do país devido a práticas antiéticas e outras razões.
Indiferença
Apesar de todas essas informações que no início de 2013 eram mais que suficientes para pelo menos avaliar com atenção redobrada tudo o que dizia respeito à Academic Journals, parece não ter havido nenhuma objeção a 13 periódicos dessa editora na avaliação trienal concluída naquele ano pela Capes (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), por meio de 29 de seus 48 comitês assessores —cada um deles com um coordenador, dois coordenadores adjuntos e em 20 consultores especializados em média.
Segue a relação dessas revistas com suas respectivas taxas de publicação para acesso livre na internet, cobradas pela Academic Journals para cada artigo. Quem paga são os autores, que muitas vezes são subsidiados pelas instituições em que trabalham.
- “African Journal of Agricultural Research” (US$ 600)
- “African Journal of Biotechnology” (US$ 650)
- “African Journal of Business Management” (US$ 550)
- “African Journal of Food Science” (US$ 550)
- “African Journal of Microbiology Research” (US$ 550)
- “African Journal of Pharmacy and Pharmacology” (US$ 600)
- “Educational Research and Reviews” (US$ 550)
- “International Journal of Sociology and Anthropology” (US$ 550)
- “Journal of Accounting and Taxation” (US$ 550)
- “Journal of Horticulture and Forestry” (US$ 550)
- “Journal of Medicinal Plants Research” (US$ 600)
- “Journal of Public Health and Epidemiology” (US$ 650)
- “Scientific Research and Essays” (US$ 550)
Uma consulta simples e aleatória a artigos dessas revistas mostra que é frequente a aceitação de trabalhos para publicação cerca de um mês após terem sido enviados por seus autores.
Com os periódicos mais prestigiados —sejam eles de acesso livre na internet ou cobrado— esse prazo leva vários meses e pode ultrapassar um ano. O processo envolve diversas etapas, como avaliação prévia pelos editores, análise por um ou mais consultores e posterior revisão. Sem falar no retorno aos autores para esclarecimentos ou correções e outras providências, quando não há recusa.
Prejuízos
Antes que comecem as acusações, esclareço que isso tudo não significa que todos os estudos publicados por essas revistas sejam de má qualidade. O que está em questão não é só o prejuízo para os trabalhos de nossos pesquisadores e para a produção científica brasileira em termos de reconhecimento internacional, mas também a expansão perniciosa de padrões inferiores de comunicação acadêmica e, além disso, a vulnerabilidade da avaliação feita pela Capes.
Também não estou considerando a Malásia um modelo para o Brasil. Mas alguma lição podemos tirar do desempenho desse país no que se refere à pós-graduação e à política científica. Inclusive devido ao desempenho comparativo com o Brasil, como mostra o quadro a seguir, baseado nas cinco avaliações mais recentes do Índice Global da Inovação, da Universidade Cornell e da Wipo (Organização Mundial da Propriedade Intelectual).
Comparação
Enquanto no período de 2011 a 2014 o Brasil despencou 14 posições nesse ranking mundial da inovação, ficando abaixo de outros países latino-americanos, a Malásia perdeu apenas duas colocações. E, diga-se de passagem, em uma disputa muito mais acirrada com europeus e tigres asiáticos.
Além disso, no mesmo período o Brasil perdeu 1,2 ponto enquanto a Malásia avançou 1,1 no índice global de inovação. A pontuação é calculada com base em indicadores de diversas áreas, como educação básica e superior, investimentos no ensino e em pesquisa e desenvolvimento, ambiente regulatório e político, sustentabilidade e meio ambiente, geração e impacto do conhecimento entre outras.
Além de ter sido um período dos mais negativos da economia brasileira, 2014 foi o ano em que nosso país se destacou mal também por sua estagnação na inovação, que em abril acabou valendo a provocativa reportagem “50 anos de soneca”, da revista britânica “The Economist”. A matéria associou nossos engarrafamentos, longas filas, prazos não cumpridos e atrasos ao pífio desempenho do país na inovação, inclusive em relação a outros latino-americanos e caribenhos.
Nada a declarar
A Academic Journals ignorou as perguntas que enviei terça-feira (3.mar) pelo seu formulário “fale conosco”, típico de muitos dos publishers acadêmicos mal-conceituados, que não fornecem e-mail para contato.
E, praticamente como copia-e-cola do que eu já disse em meu post de ontem (“Falso professor edita revista selecionada pela Capes”), esclareço que a agência do MEC afirmou na quinta-feira (2.mar) que não se pronunciará mais, alegando que tudo o que poderia dizer já está em sua nota da semana passada em resposta às perguntas que enviei para fazer a reportagem “Eventos científicos ‘caça-níqueis’ preocupam cientistas brasileiros”.
A nota da Capes, que pode ser lida na íntegra nessa matéria sobre os eventos “caca-níqueis”, desconsiderou minhas perguntas sobre irregularidades na inclusão de outras revistas. Segundo a resposta evasiva, a inclusão de periódicos no Qualis é feita com base na produção acadêmica brasileira no período correspondente ao da avaliação da qualidade dos programas de pós-graduação.
Em outras palavras, as 13 revistas da Academic Journals entraram no Qualis porque professores e pesquisadores brasileiros publicaram milhares de artigos nelas no período de 2010 a 2012. Mas não explica porque os cerca de 1.400 especialistas de 29 comitês assessores da agência do MEC não viram objeções para elas estarem nessa seleção. (Uma pesquisa com o Google nesta manhã indicou que seriam cerca de 3.890 papers, o que corresponderia, com base no mínimo de US$ 550 por artigo, a um dispêndio brasileiro de US$ 2,14 milhões, equivalente a R$ 6,45 milhões.)
Só espero que a comparação que fiz com a Malásia não sirva de argumento para criarem no Brasil outro ministério, o da Educação Superior.
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