Pós-graduação brasileira aceita 201 revistas ‘predatórias’

Por Maurício Tuffani

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Acusados no exterior de publicarem artigos científicos sem o rigor e o cuidado dos publishers tradicionais, 11 editores acadêmicos estrangeiros têm juntos pelo menos 201 periódicos cadastrados na mais recente avaliação trienal (2010-2012) da pós-graduação brasileira, realizada em 2013 pela Capes (Coodenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), órgão do MEC (Ministério da Educação).

[Atenção: a informação foi atualizada com o post “Sobe para 235 a lista de predatórios da pós-graduação brasileira” (3.abr)]

Essas 201 revistas estão na base de dados online Qualis Periódicos, da Capes, que reúne cerca de 30 mil títulos e serve para orientar pesquisadores, professores e pós-graduandos a escolher publicações científicas para seus trabalhos.

Já havia na internet alertas de instituições e cientistas e também reportagens sobre esses 11 editores antes de suas revistas serem avaliadas por 48 comitês assessores, cada um deles com um coordenador e dois coordenadores adjuntos —eleitos por comissões de pós-graduação de todo o país—, com o apoio de, em média, 20 consultores. O trabalho envolveu cerca de 2 mil especialistas.

Falha grave

A inclusão de revistas desses 11 “publishers predatórios” no Qualis foi considerada como “falha grave” da Capes por 15 cientistas de renome do Brasil ouvidos por este blog nas duas últimas semanas. Quase todos eles, no entanto, preferiram não serem identificados para não se indisporem com a agência do MEC e, sobretudo, com os próprios colegas e suas respectivas equipes que publicam nessas revistas.

As avaliações trienais se baseiam em informações sobre periódicos em que foram publicados artigos no período de apuração, conforme informações prestadas por todas as comissões de pós-graduação. A não inclusão deles no Qualis significaria que artigos publicados neles não contariam pontos para a ascensão na carreira acadêmica nem para solicitar bolsas e apoios a pesquisas, viagens e participações em conferências.

Para 11 desses 15 entrevistados, a responsabilidade pela inclusão dessas revistas no Qualis se deve muito mais a grande parte das lideranças científicas do país, que deveriam impedir, em seus grupos de pesquisa, a publicação de artigos em revistas desses editores “predatórios”. Todos eles consideraram prejudicial para a pós-graduação e para a pesquisa do Brasil a publicação nesses periódicos que são desprestigiados e praticamente desconsiderados pela comunidade científica internacional.

Baixa qualidade

Uma das exceções a esse anonimato foi o biólogo Sidarta Ribeiro, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e um dos mais respeitados pesquisadores brasileiros em neurociências. Em junho do ano passado, ele já havia criticado a Capes por “valorizar a quantidade em detrimento da qualidade”, em uma nota na revista “Nature”, uma das mais bem conceituadas do mundo, que o escolhera para comentar a ciência brasileira.

Destacando que pesquisas exigem tempo e investimentos em equipamentos, materiais e salários —quase totalmente custeados por recursos públicos no Brasil—, Ribeiro afirmou que trabalhos científicos importantes correm alto risco de serem desperdiçados quando são publicados em periódicos de baixa qualidade. “Essas revistas nunca poderiam ter entrado no Qualis”, disse o neurocientista.

Na sexta-feira (6.mar), como mostrou este blog com o post “Falso professor edita revista selecionada pela Capes”, três dessas revistas são editadas pela IACSIT (International Association of Computer Science and Information Technology ), sediada em Singapura. Questionado por este blog, Ron Wu, diretor-executivo desse publisher, afirmou o seguinte.

“Por sermos uma editora nova, temos de admitir que não temos comparação nenhuma com as editoras de renome, que têm melhores apresentações, artigos publicados e processo de revisão mais maduro em todos os aspectos dos periódicos. A IACSIT ainda está crescendo, e acho que vamos fazer melhor no futuro.”

Corrupção

Os “publishers predatórios” são caracterizados em sites de instituições de pesquisa e em blogs de cientistas de diversos países como empresários que exploram sem rigor científico o modelo editorial de publicação de artigos em acesso aberto na internet, baseado na cobrança de taxas de autores.

Tanto no acesso livre online, com taxas pagas por autores, como no tradicional modelo mantido por assinaturas anuais ou pela cobrança por artigo baixado pela internet, os periódicos bem conceituados demoram meses e até mais de um ano para analisar e aceitar artigos, ou rejeitá-los.

Acusados de priorizarem a minimização dos custos e a maximização dos lucros, os “publishers predatórios” não só reduzem a poucas semanas o intervalo entre a apresentação e a aceitação de artigos, mas também são menos seletivos e rigorosos nesse processo, como explicou a repórter Fernanda Perrin em sua reportagem “Pagou, publicou”, na Folha em 25 de janeiro.

Esses editores se concentram em atender às expectativas dos autores de publicação rápida e fácil, mas ignorar a necessidade da sociedade de somente serem publicadas pesquisas de boa qualidade, segundo o biblioteconomista Jeffrey Beall, professor da Universidade do Colorado em Denver, que mantém desde 2011 uma lista de “potenciais, possíveis ou prováveis publishers predatórios” em seu blog “Scholarly Open Access”.

“Quanto mais artigos eles aceitam e publicam, mais dinheiro eles fazem”, disse Beall. “A prática de autores que fazem pagamentos aos periódicos criou muita corrupção na publicação acadêmica”.

‘Caça-níqueis’

Além de suas revistas, alguns “publishers predatórios” também descobriram uma nova forma de ganhar dinheiro com eventos. No Brasil, 116 conferências científicas no Rio de Janeiro, agendadas para o mesmo mesmo hotel nos dias 1 e 2 de fevereiro de 2016, foram organizadas pela Waset (World Academy of Science, Engineering and Technology), como mostrou a reportagem “Eventos científicos ‘caça-níqueis’ preocupam cientistas” (3.mar).

Apesar da palavra “academia” em seu nome, a Waset é uma editora. Embora divulgue ter sede em Riverside, nos EUA, seu telefone para contato, e somente por SMS, é um celular dos Emirados Árabes Unidos. E, além de inválidos, os quatro registros de suas revistas no Qualis são da Turquia, segundo o cadastro internacional numérico de periódicos ISSN, sediado em Paris.

Sites como o do Laboratório de Tecnologia Quântica, da Universidade de Tecnologia de Queensland, na Austrália, da ENNS (Sociedade Europeia de Redes Neurais) e blogs de cientistas reúnem depoimentos negativos contra a Waset.

Os relatos explicam que as conferências em série se tornam uma só, juntando especialistas de áreas diferentes e servindo apenas para a editora lucrar com taxas de inscrição. A Waset não respondeu às perguntas enviadas terça-feira (2.mar) por este blog sobre esses depoimentos.

Rejeição

Os posicionamentos de instituições contra “publishers predatórios” não acontecem somente em países com forte tradição científica e de publicação acadêmica, mas também nos chamados emergentes.

Como mostrou este blog no sábado (7.mar) com o post “Na ciência, o ruim para a Malásia é bom para o Brasil”, desde 2010 Ministério da Educação Superior daquele país não reconhece artigos de seus pesquisadores em revistas da editora acadêmica nigeriana Academic Journals —que usa nome semelhante ao da norte-americana Academic Journals Inc.— e também não dá apoio para a publicação de estudos nelas.

Mas no Brasil 13 revistas da Academic Journals estão no Qualis, apesar de alertas na internet sobre a má qualidade de publishers acadêmicos da Nigéria em veículos sobre a comunicação científica, como o “SciDev.Net” (21.jan.2013), e pela própria “Nature” (27.mar.2013). Também desde 2010 vários informativos acadêmicos da Malásia já incluíam essa editora em seus lembretes sobre os periódicos não reconhecidos pelo sistema de educação superior do país devido a práticas antiéticas e outras razões.

A Academic Journals não respondeu às perguntas deste blog enviadas na terça-feira (3.mar) por meio de seu formulário “fale conosco”, típico de muitos dos publishers acadêmicos mal-conceituados, que não fornecem e-mail para contato.

Confusão

Outra exceção ao anonimato entre os cientistas que se manifestaram contra a aceitação de “periódicos predatórios” no Qualis foi o físico Roland Köberle, professor aposentado da USP de São Carlos e membro da Academia Brasileira de Ciências. “É muito estranho esse fato”, disse o pesquisador referindo-se à inclusão da editora Waset, de Singapura, pela Capes. Segundo ele, o Qualis tem obrigação de alertar seus usuários sobre revistas fraudulentas.

Além de revistas “predatórias” serem aceitas no Qualis, elas muitas vezes também recebem diferentes classificações de seus 48 comitês de áreas. Um dos exemplos esdrúxulos dessa multiplicidade de avaliações, que não são raros, é o do JMPR” (“Journal of Medicinal Plants Research”), da nigeriana Academic Journals.

Esse periódico recebeu do comitê de Ciências Biológicas I a classificação máxima A1. Não teve A2, mas recebeu o nível imediatamente seguinte, B1, das áreas Interdisciplinar, Ciências Ambientais e Ciências Agrárias I, além de B2 de Nutrição, Biodiversidade, Biotecnologia, Medicina I, Medicina II e Engenharias I.

Mas a classificação da “JMPR” começa a ficar estranha com o baixo nível B3 em Ciência de Alimentos, Farmácia e Educação Física. E piora com o baixíssimo B5 não só do comitê de Química, mas também justamente de Ciências Biológicas II. E, para completar a disparidade de conceito com uma área muito próxima à que lhe deu conceito máximo, a revista recebeu C em Ciências Biológicas III,

Outros lados

Com 120 títulos de periódicos, 11 deles listados no Qualis, o publisher MDPI (Multidisciplinary Digital Publishing Institute), registrado na Suíça, mas com suas operações concentradas na China, ressalta cumprir corretamente o peer review e, destacando que Beall não tem Ph.D., afirma que sua lista negra é “desnecessária e não confiável”. Ao recomendar uma página de seu site com explicações sobre as acusações contra sua empresa, Shu-Kum Lin, presidente do MDPI, afirma:

“Críticas sérias a qualquer artigo publicado em nossas revistas são muito bem-vindas e devem ser endereçadas aos editores delas. Discussões, críticas e propostas para ajudar a melhorar outros aspectos do serviço de publicação em acesso aberto também serão apreciados.”

Sediado na China e com cerca de 200 periódicos, o Scirp (Scientific Research Publishing) tem 38 revistas no Qualis. Seu presidente Barry Zhou recomenda a leitura da página de perguntas e respostas de seu blog e também seus posts de janeiro e de dezembro de 2014, no qual ele afirma:

“A experiência de Beall não é suficiente para fazer uma avaliação científica do conteúdo dos papers em tantos campos diversos. Suas declarações podem ser descartadas.”

Com cerca de 500 revistas, 30 delas no Qualis, o grupo editorial Omics, sediado em Hyderabad, na Índia, que anuncia em seu site “rápido processo de revisão em 21 dias”, respondeu por meio de nota que:

“As revistas de acesso aberto publicadas pelo OMICS Internacional se submetem a um procedimento de verificação obrigatória de qualidade e seguem uma política de padrão de revisão por pares, onde cada artigo submetido sofre um processo de profunda revisão pelos peritos nos domínios relevantes.
(…)
A Omics Internacional tem o orgulho de declarar que somos associados a mais de 1.000 sociedades acadêmicas de reputações bem estabelecidas e a personalidades eminentes que coroam os conselhos editoriais de revistas”

Wenwu Zhao, do CCSE (Canadian Center of Science and Education), com 12 revistas no Qualis, afirmou que o blog “Scholarly Open Access” de Jeffrey Beall, é pessoal e cheio de suposições pessoais e preconceitos, e que ele tenta construir seu próprio nome com a difamação dos outros. Afirmando que o CCSE desenvolveu um “sistema sério” para a seleção de artigos e que a taxa global de aceitação de trabalhos propostos por autores é de cerca de 55%, segundo ele “mais seletiva do que outros periódicos” nesse ramo. E acrescentou:

“Muitas revistas do CCSE foram indexadas pela Scopus, PubMed e outros bancos de dados de renome, que são mais responsáveis, sérios e rigorosos do que lista de Beall.”

O grupo editorial Benthan Science Publishers, proprietário do “predatório” Bentham Open, que tem 140 títulos em acesso aberto, dos quais com 43 no Qualis, se manifestou em mensagem enviada por seu diretor de publicações Mahmood Alam após o fechamento desta reportagem, na qual afirmou:

“Um processo rigoroso e padronizado de revisão é seguido por todas as nossas publicações. Os editores de nossas revistas desfrutam de total liberdade editorial sujeita aos procedimentos de controle de nosso padrão de qualidade.”

Sem comentar as afirmações do “Scholarly Open Access”, o diretor disse que seu grupo editorial tem 25 anos de atuação “séria” e 39 revistas com fatores de impacto, sendo “algumas delas as principais em seus respectivos campos”. No entanto, os exemplos de periódicos de alto impacto apontados por ele não são, na verdade, publicados pelo Bentham Open, mas pelo Benthan Science, que não adota o acesso aberto.*

Nada a declarar

Além do nigeriano Academic Journals, outros publishers considerados “predatórios” que também não responderam às perguntas deste blog foram David Publishing, com 12 revistas no Qualis, Ijens (International Journals of Engineering and Sciences), com 3, Science Publications, com 14, e WSEAS (World Science and Engineering Academic Society), com 17.

E, praticamente como copia-e-cola do que já disse este blog nos posts de sábado (7.mar) e de sexta-feira (6.mar), vale lembrar que a agência do MEC afirmou na quinta-feira (2.mar) que não se pronunciará mais, alegando que tudo o que poderia dizer já está em uma nota enviada na semana retrasada.

A nota da Capes, que pode ser lida na íntegra na reportagem  “Eventos científicos ‘caça-níqueis’ preocupam cientistas brasileiros”, desconsiderou as perguntas sobre irregularidades na inclusão de outras revistas. Segundo a resposta evasiva, a inclusão de periódicos no Qualis é feita com base na produção acadêmica brasileira no período correspondente ao da avaliação da qualidade dos programas de pós-graduação.

A agência alegou também que

“nos casos em que existam evidências e referências de práticas editoriais incorretas ou inadequadas frente à comunidade, as revistas são retiradas da base do Qualis”.

Em outras palavras, pelo menos 201 revistas desses 11 publishers entraram no Qualis porque professores e pesquisadores brasileiros publicaram milhares de artigos nelas no período de 2010 a 2012. Mas a nota não explica por que os cerca de 2 mil especialistas de 48 comitês assessores da agência do MEC não viram objeções para essas publicações.

Para conhecer os 201 periódicos desses 11 publishers, clique aqui.

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*Acréscimo feito às 7h40 em 11.mar.2015. A mensagem foi enviada às 12h46 no dia anterior.