A Folha publicou nesta quarta-feira (18.mar) em sua edição online minha reportagem “Promotoria quer que Sabesp use índices negativos para o Cantareira”, que mostra a decisão do Ministério Público do Estado de São Paulo de acionar judicialmente a companhia de abastecimento do governo paulista se ela insistir na divulgação do nível de armazenamento do sistema Cantareira por meio de percentuais positivos.
Ontem (17.mar), alegando atender à recomendação feita em fevereiro pelo núcleo Cabeceiras do Gaema (Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente), a Sabesp acrescentou a seu site “Situação dos Mananciais” mais um indicador além do índice de armazenamento obtido por meio de um cálculo distorcido que foi várias vezes contestado por este blog (“A água ainda não acabou, mas a informação já”, 20.out.2014). Além do gráfico acima, o citado site mostrou também a seguinte ilustração.
Ao apontar com destaque o percentual de 15,3% calculado com base nessa distorção, a estatal paulista passou a indicar também o índice de 11,9%. Embora o segundo seja correto numericamente, também não corresponde à recomendação do Ministério Público estadual de a companhia usar indicadores negativos, de modo a conscientizar adequadamente a população sobre a situação crítica desse conjunto de reservatórios que chegou a abastecer mais de 10 milhões de habitantes da Grande São Paulo e hoje atende precariamente a cerca de 6 milhões de pessoas.
Distorção
Antes de este blog passar a martelar essa distorção, ela já havia sido apontada pela Folha em uma reportagem minha e do jornalista Eduardo Geraque poucos dias após o início do bombeamento do chamado volume morto no ano passado (“Sabesp e grupo de crise divergem sobre nível de água do Cantareira”, 20.mai.2014).
Na fração do cálculo dos percentuais que tem divulgado desde que começou a usar o volume morto do Cantareira, a companhia tem computado no numerador o acréscimo por bombeamento, mas mantendo o mesmo denominador que já usava antes de começar a usar as águas mais profundas.
Matematicamente, usar essa forma distorcida de cálculo equivale a despejar a água de um balde em um outro, de capacidade maior, e afirmar que o percentual de volume de líquido no segundo recipiente é igual ao do que havia no primeiro.
Nota zero
Outro aspecto ridículo dessa distorção foi apontado também pelo bioquímico e biólogo molecular Fernando Reinach em sua coluna semanal no jornal “O Estado de S. Paulo” em 17 de janeiro (“Pisa na Sabesp”). O “pisa” do trocadilho no título não é do verbo “pisar’, mas da sigla do exame internacional da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) para avaliação do ensino médio. Nesse dia, Reinach afirmou:
“Todo dia, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) divulga a quantidade de água disponível no Sistema Cantareira. Em 15 de janeiro, o índice era de 6,2%. Na verdade, o número que melhor representa a realidade é 4,89%. A culpa não é da água que sumiu do reservatório, mas dos engenheiros da Sabesp, que talvez não seriam aprovados no Pisa.”
Mesmo em face da gravidade da situação do abastecimento de água, que tornou mais crucial ainda a necessidade de prestar informações transparentes, a estatal do governo paulista continuou a propalar os índices obtidos por meio dessa distorção matemática.
Críticas
No início de fevereiro, com a reportagem “Índices do Cantareira desinformam população, dizem pesquisadores”, este blog mostrou as posições dos engenheiros hidráulicos Antonio Carlos Zuffo, professor da Unicamp, e Jefferson Nascimento de Oliveira, docente da Unesp de Ilha Solteira, que se posicionaram contra essa distorção.
Para eles, a Sabesp deve indicar, entre outras informações, percentuais negativos de armazenamento em relação ao volume útil esgotado desde julho do ano passado. Nas palavras de Zuffo mostradas nessa matéria,
“Essa forma que está sendo empregada para informar à sociedade o armazenamento do Cantareira equivale a um extrato bancário que não mostra o saldo devedor de uma conta corrente que está negativa no cheque especial.”
Para Oliveira, os percentuais diários da companhia sobre o nível do Cantareira divulgados pela companhia
“mascaram e atenuam a gravidade não só da disponibilidade de água nesse sistema, mas também do comprometimento da sua segurança de seu potencial de produção hídrica. O sistema está sob o risco de colapso”.
Nessa mesma reportagem deste blog, Júlio Cerqueira Cesar Neto, professor aposentado de hidráulica da USP e ex-diretor de planejamento do Daee (Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo) no governo de Franco Montoro (1983-1986), concordou com as críticas de Zuffo e Oliveira aos percentuais da Sabesp. Segundo ele, esses dados da empresa são
“incompatíveis com a transparência de informação da qual precisávamos antes de chegar à crise atual e que agora é mais necessária ainda”.
‘Crédito fácil’
No dia 4 de fevereiro, quando a Sabesp indicava 5,2% positivos de armazenamento no Cantareira, o déficit desse sistema era de 237,04 bilhões de litros. Para esse dia, Zuffo indicou o índice de 24,1% negativos, calculados em relação ao volume útil.
Nessa data, em nota, a companhia de abastecimento do governo paulista defendeu os percentuais positivos diários divulgados em seu site argumentando contrariamente à proposta do pesquisador, com a afirmação de que
“(…) não utiliza percentual negativo, mesmo com a utilização da primeira e da segunda cotas da reserva técnica, pois na prática o Cantareira tem água disponível atualmente”.
Na prática, a empresa respondeu que na divulgação para a população o que importa não é o “saldo devedor” destacado pelos pesquisadores, mas quanto ainda está disponível no “cheque especial”. Não bastasse essa prodigalidade hídrica, a ilustração acrescentada ontem ao site “Situação dos Mananciais” anunciou a possibilidade de ampliar esse “limite de crédito” com o terceiro volume morto :
“É possível ampliar em cerca de 180 milhões de metros cúbicos o volume da reserva técnica, desde que executadas as obras que ampliem as instalações para o bombeamento.”
Promotoria
No final das contas, em 23 de fevereiro o promotor de Justiça Ricardo Castro Júnior, coordenador do Núcleo Cabeceiras do Gaema, enviou ofício ao presidente da Sabesp, Jerson Kelman, com base no estatuto do MP da União e na lei orgânica do MP estadual, recomendando que
“em prazo imediato, abstenha-se de divulgar os níveis do volume armazenado pelos Sistemas Alto Tietê e Cantareira com o cômputo das reservas técnicas como se integrassem o volume útil operacional, passando a divulgar os volumes negativos dos referidos sistemas de abastecimento, a fim de não se prejudicar a eficácia de medidas de economia no consumo de água pela população”. (O negrito é deste blog.)
Ontem, após ter alterado sua forma de divulgar o armazenamento do sistema Cantareira, mas antes de saber da posição do promotor em relação a essa mudança de procedimento, a Sabesp mostrou sua interpretação distorcida da recomendação do MP, afirmando em nota:
“O cálculo tradicional leva em conta apenas o volume útil, considerando que a reserva técnica é de uso provisório e por isso não é somada ao total e a relação é feita com a água disponível no momento (útil + reserva). Trata-se apenas de uma forma diferente de calcular. Com o novo índice, amplia-se a forma de olhar e avaliar a quantidade de água realmente disponível. Porém, a quantidade de água disponível permanece a mesma e a Sabesp sempre deixou bem claro isso. O Ministério Público apenas ‘recomendou’ a adoção do novo índice e a Sabesp considerou que a sugestão é procedente porque amplia a forma da sociedade acompanhar uma questão vital como a preservação dos recursos hídricos e todo o esforço que a população e a empresa vêm fazendo para a recuperação do Cantareira.” (O negrito é deste blog.)
Omissão
Lamentavelmente, essa desinformação ocorreu não só após décadas de uso irresponsável de bacias hidrográficas, com desmatamentos nas áreas de mananciais e poluição das fontes de água em quase todo o estado, mas também durante o ano eleitoral de 2014, com a falta de transparência sobre a gestão de recursos hídricos, agravada pela resistência do governo estadual a adotar medidas mais firmes.
Vale a pena lembrar novamente a afirmação feita no início do ano passado pela então presidente da Sabesp, Dilma Pena, revelada em gravação mostrada pela Folha na reportagem “‘Orientação superior’ impediu alerta maior sobre crise, diz presidente da Sabesp” (24.out). Segue transcrição parcial do áudio com a fala da presidente da estatal paulista.
“Cidadão, economize água. Isso tinha de estar reiteradamente na mídia, mas nós temos de seguir orientação, nós temos superiores, e a orientação não tem sido essa. Mas é um erro. (…) É um erro. Tenho consciência absoluta, e falo para as pessoas com quem eu converso sobre esse tema, mesmo meus superiores.”
Questionado sobre essa declaração, o governo respondeu que “nunca vetou qualquer alerta sobre a crise hídrica” e que “ao contrário, o próprio governador concedeu mais de uma centena de entrevistas coletivas, desde fevereiro, para salientar a gravidade da maior seca já registrada na história”.
Arrogância
Fazendo um copy-and-paste do que este blog já afirmou, na verdade eram necessárias ações de comunicação voltadas efetivamente não só à orientação da população, apontando providências a serem efetivamente tomadas para economia de água, mas também à gravidade da situação, mostrando a situação dos reservatórios sem retoques, e não entrevistas do governador ou campanhas publicitárias com céus azulados e pessoas sorridentes em vídeos exaltadores, como “Coragem, determinação e solidariedade”.
Agora há pouco, por volta das 9h desta quarta-feira (18.mar), a Sabesp manteve em seu site “Situação dos Mananciais” a mesma forma de divulgação empregada ontem. Na indicação do armazenamento do Cantareira, a página deu destaque para o dado de 15,6%, calculado com o mesmo recurso à fração esquizofrênica em que o numerador inclui a reserva morta, mas o denominador a exclui.
O site também mostrou timidamente o índice de 12%, que apesar de ser numericamente correto, não evidencia o saldo negativo do “cheque especial” em que está o Cantareira está desde julho do ano passado e também não atende à recomendação do Ministério Público.
Após todos esses tropeços, vamos ver até onde irá a arrogância da direção da grande estatal de abastecimento paulista.