Apertem os cintos, o editor sumiu!

Por Maurício Tuffani

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Página do comitê editorial do periódico "Ijet" ("International Journal of Engineering and Technology"), registrado em Singapura e editado pelo publisher chinês IACSIT (International Academy of Computer Science and Technology Information). Imagem: Reprodução.
Página do comitê editorial do periódico “Ijet” (“International Journal of Engineering and Technology”), registrado em Singapura e editado pelo publisher chinês IACSIT (International Academy of Computer Science and Technology Information). Imagem: Reprodução.

O periódico sino-cingapurense “Ijet” (“International Journal of Engineering and Technology”) está sem editor-chefe desde esta semana. A novidade acrescenta mais um capítulo à história de esquisitices dessa revista e de suas ramificações no Brasil.

Os primeiros constrangimentos foram há duas semanas para a Capes (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), do Ministério da Educação, e, em seguida, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

No dia 6 este blog já tinha revelado que o então editor-chefe do “Ijet”, o engenheiro paquistanês Abdul Razaque, não é professor da Universidade de Bridgeport, nos Estados Unidos, como ele afirmava ser no site do periódico registrado com código ISSN de Cingapura.

A própria direção de sua editora, a IACSIT (International Academy of Computer Science and Information Technology), sediada na China, disse ter ficado “chocada” com a falsa qualificação, mas que não poderia desvincular Razaque de imediato para não prejudicar a revista.

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De volta para o futuro

Outra novidade evoca mais um título de filme neste post, graças às esquisitices do “Ijet” e da IACSIT. Além da remoção do nome do editor-chefe, a imagem acima, nos itens “Frequency” dos boxes das informações gerais do periódico, mostra outro aspecto muito mais curioso.

O “Ijet” foi bimestral até o final deste ano. Desde o início do ano que vem, janeiro de 2016, a intrépida publicação passou a ser mensal. Não, não foi engano do “pessoal da informática”, que desde o início da era da computação passou a ocupar nas organizações o papel de culpados dos mordomos nas histórias de suspense. Sem precisar de wormholes conectando buracos negros de regiões distantes do universo, essa viagem no tempo aconteceu realmente, como mostra o arquivo de edições desse periódico.

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Essa viagem virtual para o futuro permite ao “Ijet” e à IACSIT contornar um fator essencial ao mundo financeiro, que é o tempo —Chronos, para os gregos e Saturno, para os romanos, o mais implacável de todos os deuses.

Além de não poder aproveitar o que não produziu no passado, um agricultor não no presente pode colher a safra dos anos seguintes, da mesma forma que uma indústria não consegue produzir antecipadamente o que está além de sua capacidade operacional.

Pré-datados

Mas o “Ijet” consegue publicar papers no futuro. É o que foi feito com pelo menos 31 trabalhos apresentados à 3ª Conferência Internacional de Engenharia Civil e Arquitetura (ICCEA 2014), realizada pela IACSIT em parceria com a Unicamp. Seus autores pagaram taxas de participação no evento de cerca de US$ 300 (R$ 969). Participantes que não apresentaram trabalhos pagaram taxas menores.

No período de julho a agosto de 2014 esses trabalhos foram inseridos com pelo menos um ano de antecipação nas edições on-line datadas para junho, agosto, outubro e dezembro de 2015.

Esses papers não são versões preliminares antecipadas, usuais em alguns periódicos prestigiados. Estão em formatos definitivos, já com páginas numeradas, permitindo serem referenciados em currículos. E sem nenhuma menção ao evento da Unicamp.

‘Turbinados’

Além de não serem apresentados em uma edição específica, devidamente caracterizada como anais da 3ª ICCEA, esses trabalhos têm o formato de artigos de periódicos. Nas avaliações de currículos para concursos, promoções, bolsas e auxílios a projetos de pesquisa, os estudos aceitos por revistas científicas contam mais que os apresentados em congressos.

Entre os trabalhos apresentados ao congresso, 19 foram registrados por pelo menos 30 de seus co-autores na classificação de “Artigos completos publicados em periódicos” ou de “Artigos aceitos para publicação”, como mostrou a Folha com minha reportagem “Cientistas ‘turbinam’ trabalhos apresentados em evento da Unicamp” (quinta-feira, 19.mar).

Alertas ignorados

Mesmo já estando desde 2012 na lista de “publishers predatórios” do blog “Scholarly Open Access”, a IACSIT teve três de suas revistas classificadas na avaliação trienal concluída em 2013 pela Capes, por meio de seu programa Qualis Periódicos, que serve para orientar pesquisadores, professores e pós-graduandos brasileiros a escolher revistas científicas para publicar seus artigos .

Não bastando a lista de “publishers predatórios” servir pelo menos como alerta contra ela, a IACSIT está também desde 2012 em avisos de diversos sites no exterior por irregularidades na organização de eventos. Apesar disso a Unicamp aceitou a parceria da editora com a terceira edição anual de sua conferência.

Nota oficial

Além de não informar quanto gastou com a realização do evento, e sem apresentar justificações com base em seus próprios procedimentos para a constrangedora parceria com a IACSIT e o “IJet”, a Unicamp, na primeira nota oficial para a citada reportagem, recorreu a uma deplorável estratégia argumentativa.  A resposta consistiu basicamente em dois atos.

Em primeiro lugar, a nota desqualificou —com erro de tradução— o biblioteconomista Jeffrey Beall, responsável pelo blog “Scholarly Open Access” e sua lista de “publishers predatórios”. E, em seguida, jogou nas costas da Capes a inclusão do “Ijet” no Qualis Periódicos. Segue a desastrada tentativa.

“Quanto à qualidade do periódico associado ao evento, o International Journal of Engineering and Technology (IJET), a direção da FEC não considera que um bibliotecário acadêmico da Universidade de Colorado em Denver, que há apenas dois anos assumiu o cargo de professor, conforme consta em seu próprio blog, tenha mais competência para classificar periódicos do que a avaliação pelos pares, tradicionalmente reconhecida no mundo científico, que no caso foi feita por professores que assessoram a CAPES, que por sua vez classifica o periódico como B3 no sistema Qualis.” (O negrito é deste blog.)

Traduttore, traditore

Há um grave erro de tradução nessa nota da Unicamp, que é uma das melhores universidades do Brasil e do mundo, como mostram vários rankings internacionais —inclusive o seletíssimo Times Highes Education, onde ela e a USP são as únicas brasileiras classificadas. Ao se apresentar na página “About the Author” de seu blog, Jeffrey Beall afirma:

“In 2012, I was awarded tenure and promoted to Associate Professor.”

“I was awarded tenure” significa “Eu adquiri estabilidade”. Além disso, como mostra seu currículodiferentemente do que afirma a nota, desde 2005 Beall era “assistant professor”. Em 2012 ele foi promovido a “associate professor”, grau que na hierarquia acadêmica dos EUA está abaixo somente do máximo “distinguished professor” ou “full professor” (professor titular no Brasil).

Ad hominem

Ainda que não tivesse cometido esse erro primário de tradução, ao tentar desqualificar Beall, a Unicamp recorreu ao estratagema argumentativo que em lógica é conhecido como “falácia do Argumentum ad hominem”. Ela pode ser definida da seguinte forma:

“É cometida quando, em vez de tentar refutar a verdade do que se afirma, ataca o homem que fez a afirmação. Assim, por exemplo, poder-se-ia argüir que a filosofia de Bacon é indigna de confiança porque ele foi demitido de seu cargo de chanceler por desonestidade. Esse argumento é falaz porque o caráter pessoal de um homem é logicamente irrelevante para determinar a verdade ou falsidade do que diz ou a correção ou incorreção de seu raciocínio.” (Irving Copi, “Introdução à Lógica”, ed. Mestre Jou, São Paulo 1974, pág. 75.)

Omissões

Isso não quer dizer que deve ser considerada como palavra definitiva a avaliação de Beall sobre os “publishers predatórios” e seus periódicos. Mas é absurdo uma universidade, um instituto de pesquisa ou agência de fomento não a considerar como ponto de partida para uma avaliação caso a caso. Esse é o ponto.

No caso da Unicamp, a nota desconsiderou completamente outros alertas na internet apresentados pela reportagem, entre eles o descredenciamento de eventos da editora em 2012 por parte do prestigiado IEEE (Instituto de Engenheiros Elétricos e Eletrônicos), fundado em 1884 nos EUA.

Porteira aberta

Para tentar esfriar a “batata quente” jogada pela Unicamp, a Capes respondeu que a cada nova avaliação da pós-graduação brasileira e dos periódicos classificados no Qualis —que de trienal passará a ser quadrienal— “os procedimentos são atualizados, modificados e aprimorados em função dos aprendizados de cada processo”.

Outra resposta, tão omissa e evasiva como essa, já havia sido dada para minha reportagem “Eventos científicos ‘caça-níqueis” preocupam cientistas brasileiros” (Folha, 3.mar), sem explicar como “periódicos predatórios” não foram barrados pelos cerca de 2 mil especialistas de 48 comitês assessores da Capes.

A agência nada acrescentou quando publiquei o post “Pós-graduação brasileira aceita 201 revistas “predatórias’” (9.mar). [Atenção: a informação foi atualizada com o post “Sobe para 235 a lista de predatórios da pós-graduação brasileira” (3.abr)]

Assim como a Capes, que deu para a Unicamp o auxílio financeiro de R$ 18 mil para a 3ª ICCEA, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) concedeu R$ 10 mil para a organização do evento. As duas agências federais admitiram que não tiveram informação das informações desabonadoras sobre a IACSIT que estão na internet pelo menos desde 2012.

Ciência com fronteiras

O custo total para os cofres públicos desse triste episódio ainda é desconhecido devido à falta de transparência da Unicamp. Ele envolveu centenas de analistas, consultores e professores de uma faculdade de uma universidade de altíssimo prestígio acadêmico e duas agências federais da área de ciência e pesquisa.

E tudo indica que ninguém foi capaz de fazer uma simples busca na internet que mostraria diversos alertas.

Essa participação de pesquisadores e instituições do Brasil em um periódico “predatório pré-datado” é mais uma prova do ridículo da retórica governamental sobre a internacionalização da ciência brasileira.

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Leia também:

“Sobe para 235 a lista de predatórios da pós-graduação brasileira” (3.abr)

“O Qualis e o silêncio dos pesquisadores brasileiros” (1.abr)

“A editora predatória e sua falácia da autoridade” (26.mar)