Sobe para 235 a lista de ‘predatórios’ na pós-graduação brasileira

Por Maurício Tuffani

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Página de abertura da editora nigeriana International Research Journals. Imagem: Reprodução
Página de abertura da editora nigeriana International Research Journals. Imagem: Reprodução

Graças à ajuda de leitores, sobe para 235 a contagem de periódicos acadêmicos de reputação duvidosa cadastrados na mais recente avaliação trienal (2010-2012) da pós-graduação brasileira, concluída em novembro de 2013 pela Capes (Coodenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), órgão do MEC (Ministério da Educação).

Ao todo são 34 títulos de publicações acadêmicas —24 de uma editora nigeriana e 10 de uma outra, do Paquistão, que se faz passar como sendo dos Estados Unidos — acrescentados à relação que eu já havia apontado em meu post “Pós-graduação brasileira aceita 201 revistas “predatórias’” (9.mar).

Todas essas revistas estão na base de dados online Qualis Periódicos, que abrange cerca de 30 mil títulos. Sua classificação nos níveis A1, A2, B1, B2, B3, B4, B5 e C é usada também em processos seletivos para contratações e promoções e em avaliações individuais e institucionais para concessões de bolsas e auxílios à pesquisa.

Sem rigor

A expressão “periódicos predatórios” tem sido usada há alguns anos para designar revistas acadêmicas editadas por empresas que exploram sem rigor científico uma importante iniciativa de comunicação científica que surgiu com a internet. Trata-se do Open Access (acesso aberto), o modelo editorial de publicação de artigos em acesso livre, financiado pelas próprias instituições acadêmicas mantenedoras dos periódicos ou pela cobrança de taxas de autores dos estudos.

Tanto no Open Access como no modelo tradicional mantido por assinaturas anuais ou pela cobrança por artigo baixado pela internet, os periódicos bem conceituados demoram meses e até mais de um ano para analisar e aceitar artigos, ou rejeitá-los. Os publishers predatórios não só reduzem a poucas semanas o intervalo entre a apresentação e a aceitação de artigos, mas também são menos seletivos e rigorosos nesse processo.

Irregularidades

Todas essas 34 revistas agora identificadas mostram más práticas editoriais, como a falta da indicação de datas de recebimento e de aceitação de artigos, que é um procedimento básico da comunicação acadêmica, ou como a aprovação apressada desses trabalhos. A análise de metadados de arquivos de artigos desses periódicos aponta também com muita frequência datas muito posteriores às de publicação, mas sem registro no texto de qualquer esclarecimento sobre eventuais correções.

Além de reportagens sobre essas irregularidades, já havia na internet alertas de instituições de pesquisa e de cientistas sobre esses dois editores antes de suas revistas serem avaliadas pela Capes. Em 2013, esse trabalho envolveu cerca de 2 mil especialistas, distribuídos por 48 comitês assessores, cada um deles com um coordenador e dois coordenadores adjuntos —eleitos por comissões de pós-graduação de todo o país—, com o apoio de, em média, 20 consultores.

Críticas

Não é difícil encontrar pesquisadores que sejam contrários à inclusão dessa revistas no Qualis. Mas ainda têm sido raros os que se dispõem a criticar publicamente essa situação, como tem mostrado este blog (“O Qualis e o silêncio dos pesquisadores brasileiros”, 1.abr).

Uma das exceções a esse silêncio é o biólogo Carlos Eduardo de Rezende, professor titular da UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense), com grande experiência de pesquisa e ensino também em instituições estrangeiras. Ao ser questionado sobre a presença de 235 revistas predatórias no Qualis, correspondente a 0,8% do alegado total de cerca de 30 mil, ele afirmou:

“Não acho aceitável e isto tem que ficar muito claro. Embora o número absoluto represente um pequeno percentual, todas as revistas que não possuam rigorosos controles acadêmicos deveriam ser banidas e considero que chegou a hora de termos uma forte revisão dentro dos critérios de áreas.
Não resta a menor dúvida sobre o efeito perverso que esse tipo de revista pode gerar para ciência nacional e internacional, assim como na formação de recursos humanos, seja na graduação ou na pós-graduação.
Ao aceitarem artigos sem revisões adequadas e sem um maior comprometimento com a qualidade,
[essas publicações] estarão inserindo no sistema um mecanismo de facilitação que comprometerá a qualidade das informações cientificas, promovendo uma propagação de informações de baixo valor experimental e, consequentemente, ampliando os danos na formação de jovens pesquisadores. “

Antecedentes

Com 28 títulos de periódicos, 24 deles listados no Qualis, a editora nigeriana IRJ (International Research Journals) chama a atenção pelo fato de suas revistas não indicarem datas de recebimento e de aceitação de seus artigos.

A editora já estava listada desde 2012 na lista de “potenciais, possíveis ou prováveis publishers predatórios” do blog “Scholarly Open Access”, do biblioteconomista Jeffrey Beall, professor da Universidade do Colorado em Denver. Nessa época, o blog já era referência internacional sobre esse tipo de problema que já vinha preocupando a comunidade científica.

Debaixo do nariz

Em outubro de 2013, quando ainda estava sendo realizada a avaliação trienal da Capes, a IRJ já deveria ter chamado a atenção de pelo menos 13 dos 48 comitês assessores dessa agência do MEC. No início daquele mês, uma reportagem do jornalista John Bohannon, da revista norte-americana “Science”, apontou uma das revistas dessa editora entre as 157 que confirmaram a aceitação de artigo elaborado propositadamente por ele com erros graves de informação.

Também em 2013, a IRJ voltou a ser destacada por Beall em um post em seu blog em novembro. O publisher foi banido pelos serviços de internet dos Estados Unidos, onde era registrado seu  domínio anterior, devido à prática contumaz de envio de spams para propor publicações de artigos a pesquisadores.

Discrepâncias

Apesar dessa exposição constrangedora que teve repercussão mundial, a editora nigeriana e 24 revistas suas não tiveram objeções na avaliação da Capes. Além de ter sido uma das classificadas nesse processo, a mesma revista flagrada pela “Science”, a “Journal of Medicine and Medical Sciences”, obteve 13 classificações no Qualis, que vão da “razoável” B2 em Ensino à mais baixa de todas, C, em cinco outras áreas, com mostra a tabela a seguir.

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Este blog já havia apontado duas outras ocorrências semelhantes, a primeira delas com outra revista predatória, também nigeriana, e, a segunda, com um periódico de um publisher tradicional (“Avaliação de revistas científicas no Brasil é ‘quântica’). Sobre essas discrepâncias, o professor Rezende, da UNEF , afirmou:

“Esse problema foi criado pela própria comunidade científica ao reconhecer que a diferença entre as áreas deveria ser o principal balizador. Mas chegou a hora de rever este critério individualizado. (…) A revista, sendo boa, deve possuir a mesma classificação em todas as áreas e, não sendo boa, deve estar fora do sistema até atingir um nível de qualidade mínima.”

Top Ten

Apesar da aceitação de suas revistas pelos comitês assessores da Capes, na própria Nigéria têm sido criticadas as editoras IRJ e sua conterrânea Academic Journals —outro publisher predatório já indicado neste blog no post de 9 de março e também em outro, “A editora nigeriana e sua falácia da autoridade’ (26.mar).

A avaliação provavelmente mais recente da penetração internacional dessas duas editoras foi publicada em janeiro deste ano por Willie Ezinwa Nwagwu, da Universidade da África do Sul, e por Obinna Ojemeni, da Universidade de Ibadan, na Nigéria, em um estudo no periódico “Learned Publishing”.

De acordo com essa pesquisa, 5.601 artigos de 5.699 autores foram publicados por revistas desses dois publishers de janeiro de 2007 até dezembro de 2012. Nwagu e Ojemeni mostraram pouca penetração desses periódicos nos Estados Unidos e na Europa. E destacaram o Brasil entre os dez países que mais tiveram papers publicados pelas duas editoras. É o que mostra a seguinte tabela de uma apresentação preliminar do estudo, feita por eles em setembro do ano passado.

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Slide da apresentação “Bibliometric study of the Nigerian Predatory Biomedical Open Access Journals during 2007-2012”, de Willie Ezinwa Nwagwu e Obinna Ojemeni. Imagem: Reprodução.

“Dupla nacionalidade”

Ao citar a editora nigeriana Academic Journals pela primeira vez no post “Na ciência, o ruim para a Malásia é bom para o Brasil” (7.mar), este blog fez a ressalva de que ela “usa nome muito semelhante ao da norte-americana Academic Journals Inc.” Depois de voltar a fazer essa reserva em dois outros posts, um leitor me alertou que, na verdade, o publisher é  paquistanês e, além disso, predatório.

Com um total de 57 periódicos com códigos ISSN dos EUA, 10 deles listados no Qualis, a Academic Journals Inc. tem no registro de seu domínio de internet endereços em Faisalabad, no Paquistão. E, de fato, é nesse país que estão os principais responsáveis por suas operações editoriais.

Beall já vinha acompanhando esse publisher desde antes de iniciar seu blog. Em 2010, em um estudo publicado na revista “The Charleston Advisor”, ele já havia identificado características predatórias dos periódicos dessa editora. Essas práticas podem ser constatadas por qualquer pesquisador sem muita familiaridade com o problema, como intervalo muito curto entre recebimento e aceitação de artigos e informações vagas sobre o corpo editorial de cada revista.

Posição da IRJ

Em resposta por e-mail, Ochuko Omadoye, gerente geral da International Research Journals, afirmou:

“A classificação da IRJ como editora predatória ou possívelmente predatória é muito chocante e desleal. Isso ocorre porque o Sr. Jeffrey Beall não é uma entidade reguladora. Ele só está expressando sua opinião ou divergência provavelmente porque está a trabalhar para algumas editoras. (…) Seja como for, a IRJ manteve um padrão mínimo de publicações. Os critérios para a inclusão de Beall de editores em sua lista de sonho não são o que estamos seguindo. Por exemplo, nossos periódicos ainda estão na fase da infância em comparação com outras revistas. No entanto, nós não publicamos documentos falsos. Não publicamos papers porque autores querem pagar, mas por mérito. Outra coisa que ele [Beall] disse a respeito da IRJ, em particular, é a maneira que nós solicitamos para trabalhos a serem publicados em nossas revistas. Será que a solicitação de papers por e-mail faz uma revista ser predatória?”

A Academic Journals Inc. não respondeu às questões enviadas para seu e-mail e para o formulário de contato em seu site.

Assim como em relação a qualquer outro especialista, não acho que o trabalho de Beall com sua lista deva ser considerado a palavra final sobre um publisher e seus periódicos. Mas é temerário deixar de pelo menos usar as informações produzidas por ele como ponto de partida para uma avaliação caso a caso. Aliás, como ele mesmo recomenda.

Resposta da Capes

Questionada também por escrito, a Capes respondeu que:

“Nos casos em que existam evidências e referências de práticas editoriais incorretas ou inadequadas frente à comunidade, as revistas são retiradas da base do Qualis e os artigos publicados nas mesmas são desconsiderados na avaliação. Reiterando então, isto aconteceu na última trienal, quando algumas dezenas de periódicos foram desclassificados. (…) Portanto, foi no momento da última avaliação trienal, feita no 4o trimestre de 2013, que ‘práticas editoriais incorretas …’ (que até então não tinham sido identificadas nos anos anteriores) foram consideradas e tais revistas foram retiradas e os artigos não computados.”

A resposta da Capes é enganosa. Diferentemente do que ela afirma, a exclusão dos citados periódicos aconteceu não aconteceu “no momento da última avaliação trienal”, em novembro de 2013. Essa alegação é desmentida pela resolução do Conselho Superior do próprio órgão, de 17 de julho daquele ano, que quatro meses antes autorizou a citada exclusão.

Além disso, diferentemente da afirmação que faz parecer que a avaliação trianual teria detectado os periódicos que foram excluídos, não foi nada disso o que aconteceu.

Não é verdade

A resposta da agência federal do MEC omite que, na verdade, 66 periódicos haviam sido excluídos pela própria Web of Science de seu “Journal of Citation Reports” em junho de 2013. Em face dessa exclusão divulgada ampla e oficialmente pela principal base de dados científicos do mundo, a Capes foi praticamente obrigada a retirar os mesmos títulos do Qualis, e o fez rapidamente no mês seguinte.

A Capes não informou o número exato de periódicos classificados atualmente no Qualis. (Para ler a íntegra das respostas da agência às questões encaminhadas, clique aqui.)

Para conhecer os 235 periódicos predatórios identificados na base de dados Qualis e seus 13 publishers, clique aqui.

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