Se havia alguma chance para ampliarmos no Brasil o debate sobre o tema das revistas científicas de qualidade duvidosa, ela se tornou mais difícil desde a semana passada. Em seu blog “Scholarly Open Access”, Jeffrey Beall, biblioteconomista da Universidade do Colorado em Denver, nos Estados Unidos, dessa vez dispersou seu foco habitual sobre os chamados “periódicos predatórios” e cutucou um vespeiro, provocando efeitos colaterais e contraproducentes para uma discussão pública equilibrada sobre o assunto.
Na quinta-feira (30.jul) Beall postou em seu blog o texto “O SciELO é uma favela de publicações?”, afirmando que essa plataforma on-line brasileira de periódicos mantida por meio de recursos públicos não consegue dar visibilidade aos trabalhos científicos. E enfatizou como melhor caminho para alcançar esse objetivo os publishers acadêmicos comerciais, que durante décadas consolidaram o modelo de cobrança de assinaturas de suas revistas e, mais recentemente, de downloads dos trabalhos nelas publicados, mas que em alguns casos também mantêm títulos em acesso livre pela internet.
Beall é um crítico do modelo Open Access (OA), no qual não há cobrança pelo acesso aos conteúdos das publicações científicas. Nele, os custos editoriais e de difusão são providos por instituições mantenedoras das publicações, muitas vezes com o apoio de recursos públicos, ou por cobrança de taxas dos próprios autores dos artigos científicos.
Predatórios
Nos últimos anos houve um enorme crescimento do número de publishers acadêmicos que exploram o OA cobrando taxas, acelerando e desvirtuando o processo de avaliação dos trabalhos propostos por autores. Tanto no OA como no modelo mantido por assinaturas anuais ou pela cobrança por artigo baixado pela internet, os periódicos mais criteriosos demoram meses e até mais de um ano para analisar e aceitar artigos, ou rejeitá-los.
Os chamados “publishers predatórios”, que têm sido o principal alvo de Beall, não só reduzem a poucas semanas o intervalo entre a apresentação e a aceitação de artigos, mas também são menos seletivos e rigorosos nesse processo.
Muitos dos entusiastas do Open Access acusam Beall de preconceito ideológico contra esse modelo. Para eles, seu blog reflete uma visão de mundo capitalista na qual só se justifica o modelo de publicação acadêmica baseado no mercado da cobrança pelo acesso aos conteúdos dos periódicos.
Dessa vez, o foco de Beall não foi os publishers predatórios e seus periódicos. Mas seu post já está provocando reações que certamente são e serão por um bom tempo um alívio para essas editoras e para os professores, pesquisadores e pós-graduandos que publicam seus trabalhos em suas revistas.
“Boa vizinhança”
Nesse post ele argumenta, e com razão, que as plataformas de editoras acadêmicas comerciais divulgam e promovem com eficácia as pesquisas publicadas em seus periódicos, inclusive no modelo OA. E ressaltou, também com razão, que esses publishers não só mantêm um estreito relacionamento com bibliotecas de instituições de pesquisa e pós-graduação, mas também asseguram a indexação de artigos nas grandes e bases de dados consultadas pela comunidade científica internacional.
A argumentação do blogueiro se complica com afirmações como as seguintes.
“Desse modo, as plataformas de publishers comerciais são boas vizinhanças para publicações acadêmicas. Por outro lado, algumas plataformas de acesso aberto são mais parecidas com favelas de publicações.”
(Em inglês, “neighborhhod”, aqui traduzido por “vizinhança”, também pode significar “proximidade” e “lugar onde se vive”.)
De início, a consistência desse post desanda por ele não apresentar dados que fundamentariam suas afirmações negativas sobre o alcance na comunidade acadêmica da SCIElo (Scientific Electronic Libray On-line). A plataforma é mantida pela entidade do governo paulista Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), pelas federais Bireme (Biblioteca Regional de Medicina), do Ministério da Educação, e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), e pelas multilaterais Opas (Organização Panamericana de Saúde) e OMS (Organização Mundial da Saúde).
Analogia
Correta ou não, a afirmação de Beall sobre a eficácia da SCIElo poderia pelo menos render uma boa discussão à luz de bons dados sobre o assunto. Porém, a falta dessas informações não teria por si só provocado os efeitos colaterais gerados pelo uso da simbologia das favelas como contraponto à estruturação e à eficácia das plataformas dos publishers acadêmicos comerciais.
Para leitores habituais brasileiros de Beall como eu, que recebem instantaneamente por “feed” as atualizações de seu blog, as reações a essa analogia foram previsíveis de imediato com a simples leitura do título de seu post, complementada pela imagem do morro da Rocinha, no Rio de Janeiro. Ainda mais com a tendência “politicamente correta” recente de abolir a “expressão” favela e de adotar, sem seu lugar, “comunidade”.
Enfim, Beall já está sendo bombardeado por ter usado essa analogia, inclusive em comentários em seu próprio blog. De minha parte, não sou dado a reações do tipo “politicamente correto” nem a endossar o discurso contrário, mas fiquei decepcionado ao constatar como efeito colateral dessa desnecessária e desastrada analogia o risco de desgaste no Brasil do debate sobre os publishers predatórios, que no nível internacional se deve ao importante trabalho desse blogueiro e biblioteconomista.
Reações
A SciELO não se posicionou oficialmente ainda sobre o post de Beall. Mas seu blog “SciELO em Perspectiva” já acolheu manifestações contra o blogueiro. Todas elas foram postadas em português, inglês e espanhol, seguindo o padrão do blog.
A primeira delas foi “A área cercada da ‘boa’ vizinhança da publicação de Jeffrey Beall”, do geofísico e editor científico Jean Vetelrop, que foi diretor dos grandes publishers comerciais internacionais Elsevier, Springer e Academic Press, e também atuou com relevância na promoção do Open Access no Biomed Central.
Na sequência, o blog da SciELO publicou a “Moção de repúdio ao ataque classista do Sr. Jeffrey Beall ao SciELO”, do Fórum de Editores de Revistas de Saúde Coletiva e da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, e o post “Jeffrey Beall e as listas negras”, do bioquímico Hooman Moomen, da Fiocruz (Fundação Instituto Oswaldo Cruz.
Moomen também se manifestou no espaço de comentários do próprio blog de Beall, onde o blogueiro negou preconceito social em sua analogia com as favelas, citando que se baseou em uma referência semelhante a guetos, que, segundo ele, não teve a mesma reação.
No Brasil
Seriam necessários outros posts para expor devidamente minhas concordâncias e discordâncias com essas manifestações sobre Beall. Mas desde já ressalto que, diferentemente do que afirmam ou, pelo menos, fazem parecer os três textos postados pela SciELO, a lista de publishers predatórios de Beall não pretende ser a palavra final sobre o assunto. Como ele mesmo afirma em seu blog,
“Esta é uma lista de editores de acesso aberto questionáveis. Recomendamos que os especialistas leiam as avaliações e descrições disponíveis fornecidas aqui, para então decidir por si próprios se querem submeter artigos, atuar como editores ou em conselhos editoriais. (…) Ressaltamos que os editores de revistas e periódicos mudam seus negócios e práticas editoriais ao longo do tempo.”
Iniciada em 2012, essa relação de editoras tem sido útil para muitas instituições acadêmicas, pesquisadores e pós-graduandos, mas como ponto de partida para suas próprias avaliações.
Foi partindo da lista de Beall, e com a ajuda de pesquisadores brasileiros, com base em critérios definidos, que apresentei neste blog mais de 200 revistas de publishers de predatórios classificadas na plataforma on-line Qualis Periódicos, mantida pelo Ministério da Educação por sua agência Capes (Coodenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Essa base de dados é a principal fonte de referência de periódicos da comunidade científica e acadêmica brasileira (ver posts de 9 de março e de 3 de abril).
Corporativismo
Para finalizar, eu não poderia deixar de observar que nesse mesmo post da semana passada Beall se equivocou também ao apontar positivamente a tentativa da Capes, em outubro do ano passado, de escolher um único publisher internacional para remunerá-lo pela edição de cerca de cem periódicos brasileiros.
Presidida desde 2003 pelo veterinário Jorge Guimarães, que ficou no cargo até maio deste ano, a Capes recebeu imediatamente críticas de editores científicos e publishers brasileiros por esse propósito. A continuidade da iniciativa foi prejudicada também pelo grave descuido com aspectos legais, por parte da diretoria da agência, chegando até a fazer reuniões individuais com potenciais concorrentes, como mostrou este blog no mês seguinte (“A nota do MEC sobre o ‘edital’ da Capes”, 21.nov). Com novos titulares hoje, tanto o ministério como a agência nem sequer cogitam entrar nessa gelada.
Enfim, esse post de Beall foi um desastre, principalmente por dar munição para aqueles que querem desqualificar seu seu monitoramento das editoras que exploram predatoriamente o Open Access. Já dá para imaginar no Brasil o suspiro de alívio de professores, pesquisadores e pós-graduandos que se valeram de periódicos de má qualidade para publicar seus trabalhos.
Mas esse desastre não invalida a importância do trabalho pioneiro de Beall. Há aspectos importantes nas críticas que fazem a ele, mas entre elas também há muitos interesses do corporativismo que ainda dá as cartas na comunidade acadêmica. E, no Brasil, se há algo que que esse corporativismo deseja é silenciar o tema das publicações científicas de qualidade duvidosa.