Promotoria questiona Unicamp por evento com editora ‘predatória’

Por Maurício Tuffani
Página de abertura da 3ª Conferência Internacional de Engenharia Civil e Arquitetura, realizada em 2014 em Campinas. Imagem: IACSIT/Divulgação
Página de abertura da 3ª Conferência Internacional de Engenharia Civil e Arquitetura, realizada em 2014 em Campinas. Imagem: IACSIT/Divulgação

O Ministério Público do Estado de São Paulo questionou a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) sobre a realização de uma conferência de engenharia no ano passado em seu campus. A Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo organizou o evento em parceria com uma editora chinesa acusada de transgredir padrões éticos acadêmicos, a IACSIT (International Academy of Computer Science and Technology Information).

Em vez de reunir como anais de congresso os trabalhos apresentados na 3ª ICCEA (Conferência Internacional de Engenharia Civil e Arquitetura), a IACSIT os publicou como artigos de um de seus periódicos, o “International Journal of Engineering and Technology”.

Pelo menos 30 participantes da conferência registraram seus trabalhos apresentados no evento na classificação de “artigos completos publicados em periódicos” em seus currículos da plataforma eletrônica Lattes. Nas avaliações para concursos, promoções, bolsas e auxílios a projetos de pesquisa, os estudos aceitos por revistas científicas contam mais que os apresentados em congressos.

O caso foi noticiado em reportagem deste blogueiro para a Folha em março (“Cientistas ‘turbinam’ trabalhos apresentados em evento da Unicamp”) e foi comentado em editorial do jornal (“Ciência em revista”, 23.mar).

DENÚNCIA

O questionamento por parte da Promotoria do Patrimônio Público de Campinas teve como base uma representação protocolada em 25 de junho por um docente da própria Unicamp, segundo a assessoria de imprensa do MP estadual, sediada em São Paulo. O ofício da promotora de Justiça Cristiane Hillal, encarregada do caso, foi encaminhado à universidade em 6 de julho, mas só foi oficialmente recebido pela reitoria em 14 do mesmo mês.

O prazo de 30 dias para resposta terminou no dia 12 deste mês. Mas a promotora já concordou com o pedido da Unicamp de prorrogação por mais 20 dias, que se encerra em 1º de setembro. A assessoria do MP informou que enquanto não receber as respostas da universidade, Hillal não se manifestará sobre o assunto nem revelará o nome da pessoa que encaminhou a denúncia.

PARCERIA

Fundada em 1966 sob o projeto de ser uma instituição de alto padrão não só na graduação, mas também na pesquisa e na pós-graduação, a Unicamp é uma das universidades do país e da América Latina de melhor desempenho acadêmico medido por rankings internacionais. E tem sido a única do bloco Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) na classificação das 100 melhores do mundo com menos de 50 anos realizada pela revista britânica Times Higher Education.

Esse desempenho acadêmico e o prestígio a ele associado têm grande valor em parcerias. Diferentemente da 1ª ICCEA, realizada em Hong-Kong em 2012, e da 2ª ICCEA, que aconteceu em 2013 em Barcelona, na Espanha, a terceira edição da conferência, no ano seguinte, em Campinas, foi a primeira vez em que a IACSIT explicitou no hotsite do evento a organização em parceria com uma universidade, o que inclusive deu ensejo ao link “About Unicamp”. Neste ano, não há vinculação como essa indicada no site da 4ª ICCEA, a ser realizada em outubro em Malaca, na Malásia.

ALTO CONTRASTE

Por outro lado, contrastando com o padrão da Unicamp, a IACSIT desde 2012 tem sido alvo de informações negativas na internet sobre conferências, inclusive sobre a desvinculação com eventos da editora em 2012 por parte do prestigiado IEEE (Instituto de Engenheiros Elétricos e Eletrônicos), fundado em 1884 nos EUA.

Também desde 2012 a editora chinesa está na relação de “publishers predatórios”, elaborada pelo biblioteconomista Jeffrey Beall, professor da Universidade do Colorado em Denver (EUA), que edita o blog “Scholarly Open Access”. A lista aponta editoras que exploram sem rigor científico o modelo editorial de publicação de artigos em acesso aberto na internet, baseado na cobrança de taxas de autores.

PREDATÓRIOS E PRÉ-DATADOS

Tanto no acesso livre online, com taxas pagas por autores, como no tradicional modelo mantido por assinaturas anuais ou pela cobrança por artigo baixado pela internet, os periódicos bem conceituados demoram meses e até mais de um ano para analisar e aceitar artigos, ou rejeitá-los.

Acusados de priorizarem a minimização dos custos e a maximização dos lucros, os “publishers predatórios” não só reduzem a poucas semanas o intervalo entre a apresentação e a aceitação de artigos, mas também são menos seletivos e rigorosos nesse processo.

Além de não terem nenhuma indicação da 3º ICCEA, os trabalhos apresentados nesse evento foram publicados pela IACSIT no “International Journal of Engineering and Technology” entre julho e agosto de 2014, mas em edições on-line desse periódico antecipadamente datadas de junho a dezembro de 2015.

SEM RESPOSTA

Até a noite de ontem (sexta-feira, 14.ago), a Unicamp não se pronunciou em resposta a perguntas deste blog sobre o questionamento do MP, encaminhadas por e-mail três dias antes e reiteradas por telefone.  Em março, sem esclarecer quanto gastou com a 3ª ICCEA, a Unicamp afirmou que pagou despesas usuais de eventos científicos, como passagens e diárias de palestrantes nacionais e internacionais.

Na ocasião, a Unicamp defendeu a parceria com a IACSIT e afirmou que 14 professores da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo fizeram parte da comissão científica do evento, formada por 41 pesquisadores.

SEM EDITOR

Desde o final de março, o “International Journal of Engineering and Technology” está sem seu editor-chefe, que foi demitido pela IACSIT após a editora ser questionada sobre irregularidades editoriais por este blog (“Apertem os cintos, o editor sumiu”, 21.mar).

A revista da IACSIT está classificada na plataforma Qualis Periódicos, da Capes, que orienta pesquisadores, professores e pós-graduandos brasileiros a escolher revistas científicas para publicar seus artigos.

OUTRA DENÚNCIA

Nenhum de todos esses aspectos constrangedores foi devidamente abordado na “explicação” sobre a reportagem e o editorial da Folha, dada em 31 de março, em reunião do Conselho Universitário, pela direção da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo. Nessa ocasião foi afirmado que uma outra denúncia sobre o evento foi objeto teve como resposta da instituição que não havia indícios que justificassem a abertura de uma sindicância.

Nessa sessão do Conselho Universitário, assim como em nota à Folha no mesmo mês, a direção da faculdade optou por desqualificar a lista de publishers predatórios de Jeffrey Beall.

Por outro lado, também no início deste ano, a Universidade de Toronto, no Canadá, emitiu um alerta após detectar e retirar de seu domínio na internet o anúncio de uma conferência organizada por um outro publisher predatório.

LIXO ACADÊMICO

Além de não compactuarem com eventos desse tipo de editoras, instituições de pesquisa e ensino superior que se pautam por critérios de excelência geralmente desestimulam a publicação de artigos em revistas predatórias para não só para eles não serem confundidos com o chamado “lixo acadêmico”, mas também para evitar que esses trabalhos percam completamente sua visibilidade para a comunidade científica internacional.

Desse modo, na medida em que as pesquisas exigem tempo e investimentos em equipamentos, materiais e salários —quase totalmente custeados por dinheiro público no Brasil—, todo esse trabalho e esses recursos correm alto risco de serem desperdiçados quando artigos científicos são publicados em periódicos de baixa qualidade ou de péssima reputação.

Agora é aguardar pela resposta da universidade e por sua avaliação pelo Ministério Público.