A imprensa parece não ter dado atenção ao anúncio pelo vice-governador de São Paulo, Márcio França (PSB), de que o Executivo paulista pretende instituir um cientista-chefe em cada uma de suas secretarias estaduais para ser responsável pela articulação entre administradores públicos, universidades e agências de fomento.
Logo após publicar no início desta manhã este post preparado ontem, notei que meu colega Marcelo Leite também tratou do mesmo tema hoje, na edição on-line da Folha, com uma ótima abordagem em sua coluna “Ciência no poder faz água? Faz chover?”. Nossas leituras sobre o assunto se complementam. [Parágrafo acrescentado às 7h40.]
O vice-governador, que também responde pela Secretaria do Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação, revelou essa intenção na quinta-feira (27.ago), na sede da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), na abertura de uma reunião com representantes de todas as fundações estaduais de fomento do Brasil. Em nota da assessoria de imprensa de sua secretaria, ele afirmou:
“Em conjunto com a Fapesp, o Governo do Estado vai elaborar um programa, onde cada secretaria contará com pesquisadores que identificarão as demandas e apontarão um formato de estudo em prol da população.”
VEJA BEM
Na verdade, a ideia não é vaga como essa tentativa de explicação do vice-governador e secretário. Tudo começou em março, quando ele pediu a colaboração da Fapesp para “aproximar o que está sendo pensado na academia do que o Estado está precisando”.
Inspirada em exemplos do Reino Unido e de Israel, a sugestão de instituir um cientista-chefe em cada secretaria estadual foi explicada pelo diretor-científico Carlos Henrique de Brito Cruz. Em nota de março da Fapesp, ele afirmou:
“Na Inglaterra, por exemplo, esse trabalho é feito por professores de boas universidades, que permanecem no cargo por um ou dois anos e depois são substituídos. Aqui também seria possível licenciar um professor da área por um ou dois anos para exercer a função de constantemente procurar como a ciência e a tecnologia poderia ajudar uma determinada secretaria em seu trabalho. Se o Estado de São Paulo fizesse isso, seria um exemplo para o Brasil sobre como conectar pesquisa com ações de governo.”
‘CHIEF SCIENTISTS’
Enfim, não se trata de nenhuma proposta sem fundamento ou que não seja baseada em experiências anteriores. Além dos chamados “chief scientists”, de órgãos governamentais —inclusive de instituições científicas, como a Nasa—, existe também em algumas grandes empresas e em outras organizações a função de “chief science officers”, conhecida pela sigla CSO.
Encantado com a sugestão, Márcio França a apresentou ao governador Geraldo Alckmin (PSDB), “que viu nela um caminho para tornar o Estado de São Paulo ainda mais eficiente”, segundo nota de sexta-feira (28.ago) da Fapesp.
RISCO
Mas um risco previsível para um cientista-chefe em um órgão governamental é o de ele se tornar uma espécie de assessor para verdades inconvenientes.
O receio tem tudo a ver. Um bom exemplo para explicar isso está na mesma nota da Fapesp que em março informou a visita do vice-governador e secretário à Fapesp, na qual ele apontou a necessidade as pesquisas ajudarem “a encontrar soluções para os problemas mais prementes do estado e de sua população”. Nesse encontro, a gestão hídrica foi uma das áreas apontadas por ele entre as de maior preocupação do governo estadual.
CRISE HÍDRICA
Chega a ser irônico que o vice-governador tenha mencionado a gestão hídrica, também destacada por Marcelo Leite. Não foi por falta de conhecimento científico disponível e amplamente divulgado —e muito menos de um cientista-chefe na sua Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos— que o governo de São Paulo deixou de tomar no início de 2014 providências sugeridas por especialistas das universidades estaduais paulistas em face da prolongada estiagem e do agravamento da situação dos reservatórios de água.
Pior: os próprios dirigentes da estatal paulista de abastecimento de água, a Sabesp, queriam adotar medidas para evitar o agravamento dos recursos hídricos. Em reunião interna eles admitiram que foram impedidos de agir por instâncias superiores, como revelaram gravações mostradas em outubro do ano passado em reportagem da Folha.
O resto dessa história se resume às conveniências político-partidárias do calendário eleitoral do ano passado.
LEI FLORESTAL
Também não foi por falta de cientistas-chefes em duas outras secretarias estaduais —a do Meio Ambiente e a da Agricultura e Abastecimento— que o Executivo paulista não tomou a iniciativa de implantar no Estado o PRA (Programa de Regularização Ambiental) de propriedades rurais previsto na lei que esquartejou o Código Florestal em 2012.
Em vez de ter sido um empreendimento elaborado, detalhado e proposto pelas duas secretarias —que dispõem de corpo técnico altamente qualificado para isso—, essa regulamentação foi estranhamente deixada por conta da Assembleia Legislativa, principalmente por parlamentares ligados ao setor ruralista, como mostrou este blog em post de 13.dez.
Esse abandono de iniciativa do Executivo resultou em grande perda de tempo. Amplamente criticada, inclusive por propor autorização de desmatamentos em termos que não existiam nem sequer na lei federal, a proposta dos deputados ruralistas acabou sendo desfigurada sob pressão de ONGs às vésperas de ser votada. Mesmo assim, teve de receber vetos parciais do governador. E poderia ter sido instituída por decreto, como fizeram os Estados do Rio de Janeiro, Bahia, Rondônia e Mato Grosso do Sul.
PAUS-MANDADOS
Não são poucas as iniciativas que funcionam bem em outros países mas deram com os burros n’água aqui, ao sul do equador, onde ainda não existe pecado. (Um dos exemplo mais eloquentes disso se deu na educação básica com a implantação da progressão continuada, que aqui acabou merecendo o apelido de aprovação automática.)
No caso dos cientistas-chefe em secretarias estaduais, ainda nada se sabe sobre seus aspectos organizacionais, inclusive como passaria a ser, após sua implantação, a relação entre os institutos de pesquisa estaduais e as agências de fomento.
Enfim, a ideia ainda não foi posta em prática e nem ao menos foi detalhada. Ainda não se pode criticá-la, mas dá para identificar no próprio Executivo o que pode aviltá-la —o potencial para indisposição com verdades inconvenientes.
É certo, portanto, que em São Paulo, assim como em qualquer outro Estado que se proponha a instituir cientistas-chefes em seus órgãos, essa função precisará de salvaguardas para não se tornar mais um espaço para paus-mandados do governo.