Contrariando conclusões da própria literatura científica médica, um grupo de otorrinolaringologistas testemunhou em favor da indústria do tabaco em nove processos judiciais entre 2009 e 2014, na Flórida, nos Estados Unidos, alegando que o uso de cigarros não foi causa de câncer de fumantes autores das ações, concluiu um estudo da Universidade Stanford publicado em 17 de julho no periódico “Laryngoscope”.
O autor da pesquisa, Robert K. Jackler, professor da Escola de Medicina de Stanford, analisou milhares de páginas desses processos judiciais e comparou os depoimentos dos médicos arrolados pelas rés, as indústrias de tabaco, com evidências científicas e conclusões documentadas em periódicos de otorrinolaringologia.
MODUS OPERANDI
Jackler se surpreendeu ao notar que o mesmo grupo de médicos já havia testemunhado na defesa de empresas de tabaco em outros 50 processos judiciais.
O pesquisador constatou que a estratégia dos depoimentos consistia em, por um lado, confundir os jurados com apresentações falaciosas de uma multiplicidade de fatores de risco ambientais de câncer de boca, esôfago, laringe e pulmão. Por outro lado, eles desconsideravam o consenso científico sobre a relação de causa e efeito entre exposição cotidiana, durante décadas, dos pacientes ao fumo e essas doenças.
Além de ressaltar que um dos médicos que atuaram nesses processos reconheceu ter recebido US$ 100 mil da empresa que o arrolou como testemunha, o autor enfatizou em sua conclusão:
“Elas [as indústrias de tabaco] identificam os melhores especialistas que o dinheiro pode comprar e os treina com uma narrativa bem elaborada para fabricar dúvidas nas mentes dos jurados, fazendo isso repetidamente processo após processo.”
NÃO É NOVIDADE
A conclusão dessa investigação no âmbito da medicina confirmou a de outro estudo, realizado na área do direito há mais de dez anos, liderado por Lissy C. Friedman, do Instituto de Advocacia para a Saúde Pública da Universidade Northeastern, de Boston, Massachusetts. Seu artigo “Como a ciência amiga do tabaco escapa do escrutínio nos tribunais”, que publicou com mais dois colegas em 2004 no “American Journal of Public Health”, enfatizou:
“Elas [as indústrias de tabaco] gastam grandes somas para cultivar especialistas na fabricação de provas para confundir jurados a respeito de questões científicas relevantes.”
Além de analisar esses processos, o estudo de Jackler também relacionou diversas pesquisas anteriores sobre o mesmo assunto, inclusive de outros países.
Um desses trabalhos foi publicado em um artigo em 2007 no periódico britânico “Addiction”. Nessa pesquisa, o professor de sociologia Heikki T. Hilamo, da Universidade de Helsinki, na Finlândia, já havia relatado que, do total de 45 médicos que testemunharam em processos contra indústrias de tabaco no seu país, 33 receberam das empresas rés financiamento para pesquisas antes ou depois seus depoimentos.
REVISAR E PUNIR
Em sua conclusão, o pesquisador de Stanford também ressaltou que a atuação de médicos em tribunais pode e deve ser submetida à chamada revisão por pares, ou seja, ao mesmo procedimento de escrutínio pelo qual passam os estudos publicados em periódicos científicos. E lembrou que desde 2003 a AAO-HNS (Academia Americana de Otorrinolaringologia de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, na sigla em inglês), estabelece que
“o perito médico deve estar ciente de que as transcrições de seus depoimentos e os testemunhos em tribunal são registros públicos, sujeitos à revisão por pares independente”.
Jackler afirmou ainda que essa associação médica prevê em seus estatutos a instauração de processos para apurar casos de violação ética, com aplicação de penalidades de censura pública, suspensão e até mesmo expulsão.
PÁGINA VOLTADA
Depois do ótimo filme “O Informante” (“The Insider”, EUA, 1999), dirigido por Michael Mann, parecia que nunca mais nenhum pesquisador, inclusive na área da medicina, se atreveria a levantar dúvidas em um tribunal sobre a relação de causa e efeito entre o consumo do tabaco e determinados tipos de câncer.
O filme mostrou o processo judicial e outras retaliações contra o médico e pesquisador Jeffrey Wigand (representado por Russell Crowe) por ter revelado para o telejornal “60 Minutes” pesquisas secretas da Brown & Williamson Tobacco Corporation sobre efeitos do consumo de cigarros. Ele havia trabalhado como vice-presidente de pesquisa e desenvolvimento da empresa, que o processou por quebra de sigilo contratual.
Essa história não foi fácil também para o jornalista Lowell Bergman (representado por Al Pacino), produtor do telejornal. A direção da rede CBS inicialmente cedeu a pressões para não publicar a reportagem. Depois de o jornal “The New York Times” desmascarar o vacilo do “60 Minutes”, a história mudou de rumo, e a empresa perdeu o processo contra Wigand.
Pelo jeito, o negacionismo dos efeitos do tabaco na saúde ainda não são página virada. Dependerá de como agirá a AAO-HSN em face dessa acusação formal e pública, feita por um respeitado professor e pesquisador, em um renomado periódico científico, contra médicos que distorceram o conhecimento científico a soldo de interesses financeiros.
PS – Minha resposta a comentários sobre o texto acima está no post “O lobby das falácias fumageiras” (21.set).