A Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) continua enroscada para responder aos questionamentos do Ministério Público do Estado de São Paulo sobre a realização em seu próprio campus, há quase dois anos, de um evento em parceria com uma editora chinesa acusada de desrespeitar os padrões acadêmicos de rigor em publicações científicas.
Realizada em Campinas em 30 de julho e 1º de agosto de 2014, a 3ª ICCEA (Conferência Internacional de Engenharia Civil e Arquitetura) foi organizada pela universidade e pela IACSIT (International Association of Computer Science and Information Technology), editora acadêmica que anuncia ser sediada em Singapura, mas tem suas operações realizadas na China.
Após responder em outubro do ano passado —com dois pedidos de adiamentos sucessivos— ao questionamento feito em junho pela Promotoria do Patrimônio Público de Campinas, a Unicamp foi novamente inquirida pela promotora de Justiça Cristiane Hillal, que pediu esclarecimentos adicionais.
MÁ REPUTAÇÃO
Além de constar desde 2012 na famosa lista de “publishers predatórios” do blog “Scholarly Open Access”, do biblioteconomista Jeffrey Beall, da Universidade do Colorado em Denver, a IACSIT é apontada também em diversos sites de instituições acadêmicas e em blogs de pesquisadores em outros países como realizadora de eventos científicos de má reputação.
Em vez de reunir os trabalhos da 3ª ICCEA no formatos de anais de eventos, seguindo o padrão acadêmico, a IACSIT não só os publicou como artigos de seu periódico “Ijet” (“International Journal of Engineering and Technology”), mas o fez em quatro diferentes edições, sem fazer qualquer referência à conferência em que foram apresentados.
Não bastassem terem sido publicados dispersivamente e sem nenhuma vinculação com o evento realizado na Unicamp, os 31 trabalhos foram veiculados em agosto de 2014, mas em edições do periódico “pré-datadas” de julho a dezembro de 2015 do periódico da IACSIT.
TRABALHOS ‘TURBINADOS’
Essa descaracterização dos 31 papers apresentados à conferência possibilitou a pelo menos 30 de seus autores cadastrá-los em seus currículos Lattes como “Artigos completos publicados em periódicos”. Essa classificação tem maior peso que a categoria “Trabalhos completos publicados em anais de eventos” em concursos públicos e em avaliações acadêmicas para promoções ou concessões de bolsas e financiamentos.
Sem esclarecer quanto gastou com a reunião, a Unicamp afirmou que pagou despesas usuais de eventos científicos, como passagens e diárias de palestrantes nacionais e internacionais, como destacou a reportagem deste blogueiro “Cientistas ‘turbinam’ trabalhos apresentados em evento da Unicamp”, na Folha (19.mar). O assunto foi comentado pelo jornal em seu editorial “Ciência em revista” (23.mar).
Ainda em resposta à reportagem de março, a Unicamp afirmou em nota que 14 professores da FEC fizeram parte da comissão científica do evento, formada por 41 pesquisadores. A universidade não informou, no entanto, se o grupo sabia de alguma das diversas informações negativas sobre a IACSIT na internet, entre elas o descredenciamento de eventos da editora em 2012 por parte do prestigiado IEEE (Instituto de Engenheiros Elétricos e Eletrônicos), fundado em 1884 nos EUA.
CASCA DE BANANA
Em sua primeira resposta ao Ministério Público, a Unicamp fez uma afirmação que complicou ainda mais sua situação. Não bastassem as explicações evasivas à maior parte dos questionamentos da promotoria, a resposta elaborada pela Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo finalizou com o seguinte argumento.
“A presença da comunidade internacional bem qualificada na área é um sinal evidente da importância do evento, assim caracterizando, portanto, um marco importante a sua realização que se deu na Unicamp em 2014. A continuidade da realização deste evento agregador dos acadêmicos e profissionais que militam na área se dará por meio da sua próxima edição (ICCEA 2015), já planejada para ocorrer na cidade de Malacca, Malásia, em 27 e 28/10/2015.” (Pág. 29 do processo MP 66.0713.006231/2015-5)
Faltou apenas a universidade “combinar com os russos”, como teria dito o craque Mané Garrincha. Durante grande parte do ano passado, e mesmo após outubro, o site oficial da ICCEA (que agora está inativo) não deu informações nem sequer sobre a programação, o comitê científico, os palestrantes e o local das sessões do evento agendado para 2015.
Na verdade, a série anual de conferências ICCEA nem sequer consta mais na página de eventos do portal da IACSIT. Para piorar, o periódico “Ijet” também não é mais apresentado na lista de publicações do site da editora chinesa, desde que conseguiu preencher seu cargo de editor-chefe, que ficou vago durante pelo menos dez meses. Em março do ano passado, após ser questionada por este blog sobre a veracidade das credenciais acadêmicas do então editor-chefe, a ICASIT o demitiu (“Apertem os cintos, o editor sumiu!”, 21.mar).
PRAZO FINAL
Todas essas esquisitices fazem com que seja muito difícil para a Unicamp dar uma resposta sincera ou não evasiva ao Ministério Público. Principalmente devido ao fato de a universidade ter sido a única instituição de ensino superior do mundo a participar da organização de uma das conferências dessa série aparentemente abortada pela própria ICASIT.
Depois de fazer outro pedido de adiamento, a universidade obteve novo prazo, que termina na próxima segunda-feira (22), segundo a assessoria de imprensa do Ministério Público paulista.
A Unicamp, a editora IACSIT e o periódico “Ijet” não responderam às perguntas encaminhadas por este blog.