A ‘pílula do câncer’, a democracia e a demagogia

Por Maurício Tuffani
Sessão do Senado Federal, presidida pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL).  Imagem: Jefferson Rudy/Agência Senado
Sessão do Senado Federal, presidida pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL). Imagem: Jefferson Rudy/Agência Senado

A aprovação pelo Senado na noite de ontem (terça-feira, 22) do projeto de lei já votado também pela Câmara dos Deputados que autoriza a produção, a venda e o uso da fosfoetanolamina, conhecida enganosamente como a “pílula do câncer”, mesmo após exames apontando ineficácia dessa droga, é um lamentável exemplo da corrupção da democracia por meio da demagogia.

Na formulação da democracia pelo estadista ateniense Péricles, do chamado Século de Ouro da Grécia Antiga (séc. 5º a.C.), o demos (povo) era o beneficiário do regime, e não o soberano, como destacou em seu livro “A invenção de Atenas”, a historiadora e antropóloga francesa Nicole Loraux (1943-2003).

No entanto, a democracia se degenerou em demagogia com as lideranças sucessoras do grande estadista ateniense, que eram incapazes de governar com base na razão quando a vontade popular era tomada pela irracionalidade, e a ela se curvavam rasteiramente, para prejuízo do próprio povo, como descreveu Tucídides (460-400 a.C.) em sua “História da Guerra do Peloponeso”, analisada por Loraux.

Uma das melhores explicações para os motivos dessa atitude legislativa irresponsável do Senado Federal na noite de ontem foi apresentada antecipadamente, no sábado (19), pelo jornalista Carlos Orsi. Em seu blog, com o post “Primeiros testes: ‘Fosfo’ da USP não funciona e não é ‘fosfo'”, ele afirmou:

(…) temo que [o relatório dos exames] será ignorado pelas vítimas do verdadeiro culto que se formou em torno da substância, e pelos abutres, de diferentes plumagens, que esperam transformar o desespero dos doentes em votos ou dinheiro.
Os testes que produziram os resultados desapontadores —mas não inesperados— foram conduzidos como parte da iniciativa desencadeada ano passado, em resposta ao forte lobby pró-liberação da “fosfo”, formado depois que uma combinação de jornalismo irresponsável, pusilanimidade oficial, ignorância e populismo criou o mito de que a a substância seria uma espécie de cura milagrosa para qualquer tipo de câncer.

Não faltaram advertências de especialistas antes mesmo dos resultados desses exames. Na semana passada, no dia 14, a Academia Nacional de Medicina, fez a seguinte recomendação em carta ao senador Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado.

A Academia Nacional de Medicina considera a aprovação desta droga sem os estudos necessários uma afronta gravíssima à comunidade científica Nacional e Internacional e reitera a sua confiança no Senado Federal para não aprovar o projeto de lei sobre o uso da fosfoetanolamina em neoplasias malignas.
Colocamo-nos ao inteiro dispor das autoridades, esperando que prevaleça a tranquilidade e sensatez necessárias para a correta resolução deste contexto.

No domingo (20), com esse e um segundo exame já anunciados, foi a vez dos médicos Carlos Vital, presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina), Florentino Cardoso, presidente da AMB (Associação Médica Brasileira), e Gustavo Fernandes, presidente da SBOC (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica), com seu artigo “O perigoso caso da ‘pílula do câncer'”, na Folha, com o seguinte alerta.

Desprezando a necessidade de realizar pesquisas clínicas antes de se liberar um medicamento, os parlamentares fazem o Brasil regredir décadas em sua escalada civilizatória.
O Conselho Federal de Medicina, a Associação Médica Brasileira e a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica se posicionam contra esse projeto de lei, que entendemos como um risco à saúde pública e um agravo ao poder constituído das entidades médicas.

Além dos resultados negativos da eficácia da fosfoetanolamina nos exames com a substância devidamente isolada, os senadores que votaram favoravelmente ao projeto de lei não apenas desprezaram esses e muitos outros especialistas e suas entidades representativas.

Muito mais que isso —e em condições agravantes muito piores que as dos deputados que já haviam votado essa mesma matéria—, esses parlamentares renunciaram demagogicamente à sua obrigação política de mediar com base na razão as complexas relações que envolvem a função de representação, especialmente em relação à ciência.