A desculpa esfarrapada da revista ‘Nature’

Por Maurício Tuffani
Imagem de embrião utilizada em estudo publicado na revista "Nature" e retratado por fraude. Imagem Obokata et. al./Reprodução
Imagem de embrião de camundongo utilizada em estudo publicado na revista “Nature” e retratado por fraude. Imagem Obokata et. al./Reprodução

“A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”, afirmou François de La Rochefoucauld (1613-1680) em suas célebres “Máximas”, de 1664.  Na semana passada, ao comentar em um editorial a retratação que fez no mesmo dia de um artigo de pesquisa fraudulento que publicou em janeiro, a conceituada revista científica britânica “Nature” ilustrou exemplarmente essa afirmação feita há 350 anos pelo famoso escritor e memorialista francês.

Seria um exagero absurdo exigir de qualquer publicação científica que ela seja imune a fraudes cometidas deliberadamente por cientistas por meio da manipulação de resultados em pesquisas apresentadas sob a forma de artigos, os chamados papers. Em qualquer ramo de atividade, por maior que seja seu empenho, o combate e a prevenção de falcatruas sempre estarão desvantagem em relação à criatividade, à dissimulação e ao despistamento na exploração de brechas em mecanismos de segurança.

Retratação

Na quarta-feira (2.jul), a revista recorreu ao procedimento conhecido na comunidade cientifica como retratação de artigo para afirmar que “muitos erros críticos foram encontrados” em um estudo publicado na sua edição online de 29 de janeiro deste ano e que eles foram resultado de má-conduta de autores da pesquisa segundo uma investigação realizada pelo próprio Instituto Riken, no Japão, onde o trabalho foi realizado em parceria com outras instituições. Coordenado pela pesquisadora Haruko Obokata, de 30 anos, o estudo anunciou a reversão, por meio de um simples banho ácido, de células adultas de diversos tecidos de camundongos para seu estágio embrionário.

Já apelidada pela sigla STAP em inglês (aquisição de pluripotência induzida por estímulo), a técnica proposta no artigo de Obokata trazia a promessa implícita de dispensar não só as complicações éticas do uso de embriões humanos para obter as chamadas células-tronco embrionárias humanas (CTEHs). O trabalho se mostrava também como um passo decisivo para evitar os riscos de combinar CTEHs com a manipulação genética de vírus para desenvolver tratamentos de diferentes tipos de câncer e doenças como as de Parkinson, Alzheimer e outras. Só faltaria reproduzir em humanos os mesmos resultados obtidos com camundongos.

Nos dias seguintes à publicação desse artigo, vários outros laboratórios tentaram sem sucesso reproduzir os resultados anunciados por Obokata e seus colegas. Rapidamente surgiram em blogs de pesquisadores a suspeita de adulteração de imagens de células usadas no estudo, que foi complementado na mesma edição por outro trabalho da mesma equipe.

Falha reconhecida

No editorial “STAP retratada”, a direção da revista afirmou:

“Nós, da ‘Nature’, examinamos os relatórios de nossos revisores sobre os dois trabalhos e nossos próprios registros editoriais. Antes da publicação, verificamos que os resultados haviam sido replicados de forma independente nos laboratórios dos co-autores, e lamentamos não termos tomado posse de garantias dos autores em suas declarações de contribuições autorais.”

Desse modo, a revista fez parecer que agiu com transparência ao fazer do editorial sua própria retratação, reconhecendo que deveria ter exigido, por escrito, de cada um dos oito autores do artigo, garantia dos resultados a ele creditados nos estudos. No parágrafo, seguinte, no entanto, deu a entender que, mesmo sem essa falha, a revista não teria evitado a publicação do artigo fraudulento.

“Concluímos que nós e os revisores não poderíamos ter detectado os problemas que minaram fatalmente os artigos. Os relatórios rigorosos dos revisores conduziram justamente à confiança que foi apresentada nos papers.”

Não poderiam, mesmo? É estranho demais a própria revista dizer isso após lamentar não ter exigido de cada autor a garantia formal dos resultados apontados como seus nos dois estudos.

Não é bem assim

Acontece que em 10 de março, já com a investigação em curso pelo Instituto Riken, outro co-autor, Teruhiko Wakayama, da Universidade Yamanashi, no Japão, afirmou não ter certeza da procedência das células usadas por ele em seu laboratório, pois as teria recebido da jovem coordenadora do estudo, Obokata. “Eu mesmo não sei o que usei em meus experimentos”, disse Wakayama por e-mail ao diário norte-americano “The Wall Street Journal. E acrescentou: “Não há mais credibilidade quando existem tais erros cruciais”.

Em outras palavras, se a “Nature” tivesse exigido de cada autor a garantia formal que lamenta não ter obtido antes da publicação, é razoável supor que pelo menos Wakayama apontasse alguma restrição.

Além disso, a promessa implícita dos dois trabalhos coordenados por Obokata —eliminar as complicações éticas e técnicas da pesquisa com CTHEs para tratamentos de diversas doenças crônicas— deveria ter feito a revista redobrar seus cuidados. E por dois motivos.

Lição não aprendida

Em primeiro lugar, a revista norte-americana “Science”, principal concorrente da “Nature” no segmento dos periódicos científicos multidisciplinares, já havia entrado em uma roubada semelhante em 2005, com a publicação de dois artigos que na verdade descreviam uma falsa clonagem de CTHEs pelo sul-coreano Woo-suk Hwang, então professor da Universidade Nacional de Seul.

Com a repercussão internacional do estudo de Hwang, que foi turbinada pela estratégia midiática da própria “Science”, o governo da Coreia do Sul chegou a investir US$ 65 milhões no laboratório do pesquisador e reservou outros US$ 15 milhões do Ministério da Saúde e do Bem-Estar Social para a criação de um Centro Mundial de Células-Tronco.

Ou seja, devido não só a esse precedente, mas a vários outros envolvendo também células-tronco, a “Nature” jamais deveria ter tratado dos dois artigos coordenados por Obokata como um trabalho meramente rotineiro.

Interesses comerciais

Um outro motivo que deveria ter servido para  a “Nature” não ter considerado a avaliação desses dois artigos como um procedimento ordinário qualquer está nos grandes interesses comerciais por trás de trabalhos nesse ramo de pesquisa e na disputa por patentes entre laboratórios. E esses interesses já haviam se tornado públicos —e mais conhecidos entre pesquisadores dessa área, o que inclui os revisores da revista— muito antes de 20 de dezembro, quando a revista decidiu formalmente publicar os dois estudos.

Uma boa apresentação sobre essa disputa foi feita em 6 de setembro por Paul Knopfler, da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em Davis, em seu blog, com o post “Japão busca posição de comando em novas células-tronco”.

No final das contas, ao servir como prato cheio para a aliviar a vergonha pela qual passou sua concorrente “Science” há quase dez anos (a revista mantém uma página com a retratação e outros documentos em seqüência cronológica), a “Nature” caiu em uma armadilha no mesmo terreno minado, com a agravante de não ter aprendido a lição. E, da mesma forma que sua rival, sem ser verdadeiramente  transparente e autocrítica.

Isso se torna muito mais grave com o fato de que essas duas respeitadas revistas, assim como muitos outros periódicos científicos, cobram das universidades e outras instituições de pesquisa dezenas de milhares ou até centenas de milhares de dólares para o acesso pela internet aos estudos  publicados.  O mesmo vale para outras revistas, que cobram dos autores até milhares de dólares para publicar seus artigos.*

* Parágrafo substituído em 7.jul às 20h04. Na versão anterior constava erroneamente que as duas revistas citadas cobram dos autores para publicar seus artigos.