Incidente, acidente e a retórica sobre a tragédia de Mariana

Por Maurício Tuffani
Andrew Mackenzie, CEO da mineradora anglo-australiana BHP Billiton, em pronunciamento no dia 6.nov sobre o rompimaneto de barragens da Samarco em Minas Gerais. Imagem: YouTube/Reprodução
Andrew Mackenzie, CEO da mineradora anglo-australiana BHP Billiton, em pronunciamento no dia 6.nov sobre o rompimaneto de barragens da Samarco em Minas Gerais. Imagem: YouTube/Reprodução

O desastre ambiental que começou em Minas Gerais e agora atinge o Espírito Santo, provocado pelo rompimento de duas barragens de rejeitos de mineração situadas entre Mariana e Ouro Preto (MG) no dia 5, foi chamado de “incident” —que em inglês significa “incidente”— por Andrew Mackenzie, CEO da BHP Billiton, empresa anglo-australiana que, assim como a brasileira Vale, detêm 50% das ações da Samarco Mineração, responsável pelas duas represas.

No entanto, na versão legendada pela Samarco do vídeo com o pronunciamento feito por Mackenzie no dia seguinte ao desastre, a palavra inglesa “incident” foi distorcidamente traduzida como “acidente”.

Curiosamente, essa distorção combinou com a retórica de Ricardo Vescovi de Aragão, diretor-presidente da Samarco Mineração. Em seu pronunciamento também gravado em vídeo, ele se referiu a essa catástrofe de dimensões bíblicas como um “acidente”.

Ricardo Vescovi de Aragão, diretor-presidente da Samarco Mineração chama de "acidente" o desastre provocado pelo rompimento de duas barragens de rejeitos de sua empresa. Imagem: YouTube/Reprodução
Ricardo Vescovi de Aragão, diretor-presidente da Samarco Mineração, chama de “acidente” o desastre provocado pelo rompimento de duas barragens de rejeitos de sua empresa. Imagem: YouTube/Reprodução

PREJULGAMENTO

A diferença no uso dessas duas palavras não é mero detalhe, inclusive em inglês. Ao qualificar o fato como “incidente”, Mackenzie não descartou a possibilidade de que ele poderia ter sido evitado por meio de um sério trabalho de gerenciamento de riscos.

Por outro lado, ao qualificar a tragédia como “acidente”, o executivo brasileiro a prejulgou retoricamente, dando a ela um caráter de imprevisibilidade, apesar de ele ter afirmado, no mesmo pronunciamento, que naquele momento não era possível “determinar as causas e a coleta extensão do ocorrido”.

Opinião diferente é a do coordenador de Meio Ambiente do Ministério Público de Minas Gerais, promotor de Justiça Carlos Eduardo Ferreira Pinto, em entrevista ao “Jornal da Globo” no dia 9. Um documento da Promotoria indica que havia risco de rompimento das barragens da mineradora, como informaram o telejornal e reportagem da Folha. Nas palavras do promotor,

Não foi acidente. Não foi fatalidade. O que houve foi um erro na operação e negligência no monitoramento.

SIGNIFICADOS

Como ainda não disponho de dados técnicos para concluir sobre as reais responsabilidades pelo desastre, acho que vale a pena levar refletir sobre o uso dessas duas palavras no âmbito do gerenciamento da comunicação de crise. Para isso, recomendo a leitura das seguintes definições apresentadas pela consultora norte-americana Pamela Ferrante Walaski em um webinar (seminário de treinamento pela internet) da Safety.BLR.com.

Incidente: Um evento não planejado e não desejado, que dificulta a conclusão de uma tarefa e pode causar lesões, doenças ou danos à propriedade, ou alguma combinação de todos esses três [efeitos] em diferentes graus, do poco significativo ao catastrófico. Não planejado e não desejado não significa impossível de evitar. Não planejado e não desejado também não significa impossibilidade de preparação para o planejamento.

Acidente: A definição muitas vezes é semelhante à de incidente, mas suporta a ideia de que não poderia ter sido evitado. Um acidente é o oposto das intenções fundamentais de um programa de segurança, que é encontrar perigos, corrigir riscos e prevenir incidentes. Quando aceitamos que os acidentes não têm nenhuma causa, assumimos que eles voltarão a acontecer.

PARA PIORAR

Enquanto incidentes ou acidentes catastróficos acontecem, provocados por atividades econômicas altamente lucrativas que em outros países são submetidas a rigorosos programas de fiscalização e de gerenciamento de riscos e de controle ambiental, desde 7 de agosto está sujeito à apreciação do plenário da Câmara dos Deputados o projeto de lei 37/2011, que prevê criar a ANM (Agência Nacional de Mineração) e também instituir o Código Nacional de Mineração.

Em sua atual versão, o projeto de lei a ser votado é o substitutivo apresentado pelo deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), relator da comissão especial. Entre outras proposições, o texto prevê para a agência a ser criada poderes para impedir a criação e a ampliação de parques, estações ecológicas e outras unidades de conservação e outras atividades que tenha “potencial de criar impedimento à atividade de mineração” (artigo 109).

Como já informou este blog em post de 26 de agosto, se essa ideia for levada adiante e incorporada à legislação, o ICMBio, a Funai e os órgãos estaduais de unidades de conservação passarão a depender da nova agência reguladora em boa parte de suas atribuições.